Mobilidade, bicicleta e desigualdade social

Por Daniel Guth
Foto: João Gunal
Foto: João Gunal

A profunda desigualdade social ainda muito presente pode ser observada em diversas dimensões da vida em sociedade. Do mapa da fome à falta de moradia digna; da ausência de saneamento básico para alguns à qualidade do ensino público; da concentração de renda nas mãos de poucos à violência policial nos PPP’s (pretos, pobres, periferia).

A falência do modelo atual de mobilidade urbana, por sua vez, é também um importante sintoma da desigualdade social. E é sobre estes aspectos que me debruçarei neste artigo.

 

Desigualdade social #1: a oferta de transporte público

Segundo a pesquisa domiciliar Origem/Destino – realizada pelo Metrô a cada 10 anos na Região Metropolitana de São Paulo – quanto menor a renda familiar, maior o uso que se faz do transporte público. E quanto maior a renda, maior o uso de automóveis (veja gráfico abaixo).

Fonte: Pesquisa Origem-Destino (Metrô, 2012)
Uso de transporte individual e coletivo por renda familiar (fonte: Pesquisa de Mobilidade Urbana/ Metrô, 2012)

Este por si só já seria um dado alarmante. Mas se cruzarmos o mapa de oferta de transporte público com o mapa de renda familiar, observaremos que os paulistanos mais dependentes do transporte público, ou seja, aqueles com renda mais baixa, moram em regiões com pior oferta de transporte público. E aqueles que não dependem do transporte público, pois optaram pelo transporte individual motorizado, moram em regiões onde há melhor oferta de transporte público.

Desigualdade social #2: o tempo nos deslocamentos

Além da baixa oferta de transporte público coletivo àqueles que mais dependem dele, o tempo de deslocamento é um importante fator causador de estresse e sofrimento na população paulistana. Segundo a Pesquisa de Mobilidade Urbana, realizada anualmente pelo Ibope/Rede Nossa São Paulo, o paulistano fica parado no trânsito, em média, 2h46m todos os dias.

O mapa abaixo, produzido pelo aplicativo Moovit, em toda a cidade, mostra o mapa de calor segundo o tempo de deslocamento dos paulistanos.  Ele evidencia, mais uma vez, que as distâncias nesta correlação moradia-trabalho, bem como a precariedade da oferta de transporte público coletivo eficiente, representam mais um fator de injustiça e desigualdade social em nossa cidade.

Fonte: Moovit
Fonte: Moovit

Desigualdade social #3: os bairros-dormitório e a concentração de renda e trabalho

Pela característica excludente do crescimento da cidade, que fez com que boa parte da população se adensasse em bairros-dormitório, distantes de serviços básicos e essenciais para a vida cotidiana, os sistemas de transporte – especialmente os de alta capacidade, não acompanharam este crescimento na mesma velocidade. A longo prazo o Plano Diretor Estratégico de São Paulo visa corrigir ou minimizar estas injustiças, aproximando moradia do trabalho e buscando criar novas centralidades, de maneira que as ofertas de emprego se aproximem da moradia. Mas ainda assim a característica das políticas habitacionais, especialmente nas décadas de 60 e 70, continham no seu DNA um higienismo e uma perniciosa tendência de apartheid social que ainda levará muitas décadas para se corrigir.

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Apenas como efeito ilustrativo, todos os dias saem da zona leste de São Paulo mais de 3 milhões de pessoas – quase a população inteira do Uruguai – para trabalhar na região centro-sul, que concentra a maioria dos postos de trabalho da cidade. Estas características, associadas à lentidão e à falta de vontade política, bem como a uma resistência da sociedade em se promover maior diversidade do uso e ocupação do solo – especialmente nas zonas mais ricas da cidade – continua subjugando a população ao apartheid social e impedindo seu pleno direito à cidade. E a mobilidade urbana sofre e agoniza junto com a população.

Desigualdade social #4: a bicicleta como solução

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (IBGE), realizada entre os anos 2008 e 2009, quase 40% dos brasileiros que adquiriram uma bicicleta para utilizar como meio de transporte tinham renda familiar de até R$ 1200. Na média, de todos os brasileiros que compraram uma bicicleta, suas rendas eram quase 12% inferior à renda média dos brasileiros. Ou seja, quem compra e se utiliza da bicicleta como meio de transporte, seja no cenário urbano ou rural brasileiros, são aqueles/aquelas que mais necessitam deste veículo para seus deslocamentos. Seja como economia do vale transporte, seja como instrumento de trabalho, a bicicleta ainda é um dos principais modos de transporte inclusivo e justo socialmente.

Aludindo contemporaneamente aos conceitos de Henri Lefebvre, uma cidade orientada para ciclistas e pedestres é uma cidade que garante aos seus habitantes o pleno direito à cidade. Devolver a escala humana, tanto para a orientação urbanística do crescimento da cidade, quanto para a mobilidade urbana, deveria ser uma perseguição intransigente do poder público. Uma cidade onde as distâncias, a vida funcional e os serviços essenciais podem ser alcançados em algumas pernadas – a sapato, bicicleta, skate, etc – é uma cidade que pode se orgulhar de ver boa parte do sofrimento e da exclusão social de seus habitantes reduzidos drasticamente.

As bicicletas e a estrutura cicloviária pensada para elas trazem consigo esta quebra de paradigma e suscitam o ódio daqueles que não querem ver a cidade diminuir seu apartheid social a partir do direito à cidade e de uma mobilidade urbana não orientada pela exclusão.

Mais bicicletas, menos apartheid! Mais bicicletas, menos sofrimento!

Desigualdade social #5: ciclovias na periferia

Ganha corpo, em São Paulo, o movimento #CicloviaNaPeriferia. Com a consolidação de uma rede de ciclovias e ciclofaixas na região centro-oeste, a decisão política por se iniciar a rede a partir da área mais central da cidade acabou evidenciando uma fragilidade de praticamente todas as políticas concernentes à mobilidade: a inclusão dos bairros para além das pontes e viadutos.

Foto: Roberson Miguel (CicloZN)
Foto: Roberson Miguel (CicloZN)

Historicamente é nos bairros mais distantes do centro onde o uso de bicicletas se dá com maior intensidade. Podemos destacar, ainda a partir da Pesquisa Origem-Destino, os bairros do Grajaú (extremo da Zona Sul), Jardim Helena (extremo da Zona Leste) e Vila Maria/Vila Guilherme (Zona Norte) como os três distritos com maior número de viagens feitas em bicicletas.

Segundo apuração da Folha, com base nos dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), as Subprefeituras que mais receberam ciclovias do programa de 400km da gestão Fernando Haddad, até o momento, foram a do Butantã (40,2km), da Sé (33,8km) e da Lapa (19,7km).

Evidentemente que um sistema cicloviário só é funcional para o cotidiano de quem usa bicicleta se ele constituir uma rede completa, que considere as importantes centralidades na cidade e nos bairros, que promova integração entre os diversos modais de transporte e que garanta segurança e conforto especialmente nas vias arteriais, tradicionalmente as vias mais perigosas para quem pedala e caminha por elas.

No entanto, foi necessário colocar estrategicamente este tema como discussão central da mobilidade urbana na cidade, visando especialmente romper com alguns paradigmas e resistências de setores conservadores da sociedade, que sentiram o golpe narcísico de ver alguns de seus privilégios elitistas serem engolidos pela tinta vermelha que passou a colorir e democratizar um pouco mais o espaço viário da cidade.

É inegável, portanto, o poder de reverberação das políticas públicas quando aplicadas no centro. Bem como, para se constituir uma rede cicloviária, é necessário iniciar por algum lugar. Porém, não garantir uma rede completa de infraestruturas para ciclistas que circulam para além das pontes e viadutos, é ainda um reforço que mantém acesa a chama da desigualdade e do apartheid social.

Será necessário debater e consensuar, inclusive, sobre quais modelos de implantação devem ser priorizados nos 40% restantes a serem implantados do plano dos 400km de ciclovias. Serão priorizadas bacias cicloviárias em bairros específicos, que integrem os modos ativos de transporte com estações de trem, metrô e terminais de ônibus, a exemplo do que foi feito no Jardim Helena? Ou serão priorizadas ciclovias em grandes corredores arteriais, que possam interligar as áreas mais periféricas com o centro de São Paulo, segundo uma lógica mais expressa, mais direta, como é a eternamente inacabada ciclovia da Radial Leste ou a recém entregue ciclovia da Av. Eliseu de Almeida?

Estas questões ainda não foram amplamente debatidas, tampouco incorporadas nos instrumentos legais que garantirão que estas políticas cicloviárias perpassem esta gestão e possam ser continuadas e ampliadas pelas gestões vindouras.

#CicloviaNaPeriferia, muito mais do que uma pauta legítima, um tema urgente e necessário. É a garantia do direito constitucional de ir e vir em segurança; em qualquer canto, em qualquer periferia desta cidade.