Abertura da Av. Paulista aos domingos: respeito à sua vocação histórica

Por Daniel Guth

Na ultima quinta-feira participei de um debate promovido pelo Rotary Club e Associação Paulista Viva para discutir os benefícios – e malefícios (?) – da abertura da Avenida Paulista aos domingos.

Para além da terapia coletiva que virou o encontro, muito bem relatada pelo repórter da Folha Emilio Sant’anna, muitas (des)informações foram apresentadas como verdades incontestes por alguns dos participantes na plateia (majoritariamente moradores lindeiros à Avenida Paulista) e aqui gostaria de apresentá-las para debatermos e refletirmos coletivamente.

Foto: Rachel Schein
Foto: Rachel Schein

INTRODUÇÃO

Em primeiro lugar: por que estou dizendo “abertura da Av. Paulista” e não “fechamento”, vocês me perguntariam. É preciso mudar a ótica para podermos debater o tema. Se a vocação histórica da Av. Paulista é ser uma via para as pessoas, por que continuamos utilizando como referência o termo “fechamento aos carros”?

Acostumamo-nos a nos referir a atropelamentos e colisões a partir da ótica do prejuízo ao tráfego; leis e normas se referem à bicicleta e à caminhada como modos “não-motorizados” de transporte; os transportes público, a pé ou por bicicleta são comumente chamados de “modos alternativos” de transporte. Por que nossas premissas partem de uma hierarquia que sempre privilegia o automóvel e suas matizes de pensamentos meticulosamente construídos?

 

CONTEXTO E VOCAÇÃO HISTÓRICA DA AVENIDA PAULISTA

Desde o seu nascimento a Avenida Paulista é muito mais das pessoas – vivendo, circulando, passeando, trabalhando – do que do ronco do motor, dos automóveis, do trânsito e da poluição. Até a década de 60 a Avenida Paulista era só casarões, calçadões, bondes e duas estreitas faixas de rolamento para automóveis. Prioridade era: 1) pessoas; 2) transporte público; 3) automóveis. Até 1952 a Avenida Paulista era, pasmem, ZER – Zona Estritamente Residencial.

Em 1968 se deu o projeto de “modernização” da Avenida, visando “remover interferências” e dar mais espaço e novas faixas de rolamento para a circulação de automóveis. Sim, os pedestres e os lindos ipês que existiam na Avenida foram denominados de “interferências” no projeto de alargamento da Avenida Paulista. 10 metros de calçadas foram retirados dos pedestres, mais de 120 frondosos ipês foram arrancados e os bondes já haviam sido removidos alguns anos antes. A nova orientação era: o carro. E tudo o que não obedecia esta orientação era considerado “interferência” ou subversão – afinal, estávamos no auge da violenta ditadura militar.

Avenida Paulista (década de 1960)
Avenida Paulista (década de 1960)

O Prefeito Faria Lima, um dos mais rodoviaristas que São Paulo já teve, foi o responsável, à época, por liderar esta tentativa de desfiguração da Avenida Paulista.

Inaugurada em 1891, a Avenida Paulista sobreviveu até o início da década de 70 – ou seja, por 80 anos – privilegiando a vida, as pessoas, o convívio, as relações interpessoais, de vizinhança e o transporte público. A partir de 1970, uma sequência de canetadas e tentativas de desfigurar esta histórica vocação da Avenida culminaram por gerar desigualdades de uso e ocupação desta importante e diversa via pública.

Diferentemente de outras Avenidas como a Consolação, Sumaré, Rio Branco e Rebouças – que também foram alargadas e tiveram “interferências removidas” na mesma gestão Faria Lima – a Avenida Paulista meritoriamente conseguiu conservar bastante de sua característica de via mais humanizada, plural e compartilhada por uma boa diversidade de modais de transporte.

AINDA QUE CONSERVANDO ESTAS CARACTERÍSTICAS, QUAIS SÃO OS NÚMEROS ATUAIS E A DESIGUALDADE SOCIAL E DE OPORTUNIDADES ASSOCIADAS A ELES?

Antes da ciclovia, a Avenida Paulista já tinha 1 mil ciclistas circulando diariamente, sem qualquer tipo de apoio. Hoje já ultrapassamos 1 mil e estamos caminhando para uma das ciclovias de maior movimento da cidade.

O volume de carros no horário de pico, segundo medições da CET – Companhia de Engenharia de Tráfego, pode atingir 6.900 carros/hora. Isto significa, estendendo a capacidade de horário de pico (das 7h às 10h e 17h às 20h), e reduzindo um pouco ao longo do dia, quando o tráfego é menos intenso, que o número máximo de carros cruzando a Avenida é de pouco mais de 65 mil carros. Considerando o índice de 1,2 pessoa por carro (em 2011 era de 1,4 pessoa/carro), então temos no máximo 78 mil pessoas em carros usando a Avenida Paulista.

Enquanto no sistema de ônibus são 320 mil pessoas, segundo a SPTrans. 140 mil saindo das estações da linha verde do metrô e 1,5 milhão de pedestres nas calçadas da Avenida Paulista. Vale repetir: UM MILHÃO E MEIO DE PESSOAS A PÉ.

Retirando a faixa exclusiva de ônibus, que hoje ocupa o bordo direito da via, as faixas de rolamento destinadas aos automóveis somam 8 metros de cada lado, totalizando 16 metros de largura. Com 2,7 km de comprimento de Avenida, então temos 43,2 mil metros quadrados de área para 78 mil pessoas em carros circularem.

Considerando que as calçadas têm, em média, 10 metros de largura (média bastante generosa, uma vez que há muitos pontos de estreitamento), então temos 54 mil metros quadros para 1,5 milhão de pessoas. Resultado da conta da inequidade e da desigualdade de uso e ocupação do solo:

– Cada motorista usufrui, na média, de 0,5 metro quadrado da Avenida Paulista;

– Cada pedestre usufrui, na média, de 0,03 metro quadrado da Avenida Paulista;

Ou seja: considerando que o espaço ocupado por motoristas de automóveis seja de 100%, o espaço destinado aos pedestres é de 6%. SEIS POR CENTO.

A abertura da Avenida Paulista aos domingos, portanto, é uma migalha perto da história da Avenida e da profunda desigualdade associada com a falta de equidade na distribuição dos espaços e no uso e ocupação da via.

Foto: Rachel Schein
Foto: Rachel Schein

“Ninguém é a favor da abertura da Paulista aos domingos! É loucura desse Prefeito!”

Pesquisa do Datafolha já mostrou que 70% dos paulistanos aprovavam a criação da ciclovia na Av. Paulista, apesar do desespero da mesma parcela da população que foi contrária e que ainda resiste à abertura da Avenida aos domingos.

Em 2004, a então prefeita Marta Suplicy realizou a abertura de grandes avenidas para lazer, em caráter experimental, incluindo a Avenida Paulista. Interessante observar as opiniões à época, 11 anos atrás.

As primeiras experiências de grande avenidas de lazer aconteceram em 1976 na cidade de Bogotá (Colômbia), por pressão dos próprios colombianos. Ruas e avenidas foram fechadas completamente para as pessoas caminharem, pedalarem, brincarem, curtirem a cidade promovendo qualidade de vida. Confira um pouco desta história aqui.

A cidade de São Paulo hoje já conta com mais de 1 mil ruas de lazer – vias que são fechadas, aos domingos, para o lazer e a recreação dos paulistanos. A primeira rua de lazer foi implantada em 1977, em São Miguel Paulista. Em 1999 o programa “Ruas de Lazer” foi regulamentado via decreto e institucionalizado amplamente na cidade. Confira esta história.

Concluindo: não, esta não é uma ideia nova. E não, esta não é uma loucura do atual Prefeito de São Paulo.

“A Av. Paulista tem muitos hospitais. Não dá pra fechar aos carros! Pessoas vão morrer”

Segundo levantamento da Folha, nenhum hospital se opõe à abertura aos domingos. De 10 hospitais da região que foram consultados, sete disseram não se opor à abertura. Três não quiseram responder. Todos são categóricos em afirmar que há outras opções de acesso que não pela Av. Paulista e que há muito eles já se utilizam destas alternativas pois interrupções – como manifestações – são bastante comuns na Avenida Paulista.

“Mas e as ambulâncias? As pessoas vão morrer e a culpa será dos ciclistas”

Mesmo a circulação de ambulâncias é facilitada por uma via com pessoas aos invés de carros. Pense bem: é mais fácil ligar a sirene e atravessar uma via cheia de ciclistas e pedestres ou tentar atravessar a mesma via no horário de pico, entupida de carros? Pessoas abrem e liberam espaço. Carros não somem, não evaporam, não levitam, não têm margem para abrir e liberar espaço. É uma questão de física e não de opinião.

Vejam o vídeo abaixo de uma ambulância atravessando em meio a uma bicicletada.

E este outro de uma ambulância tentando passar em uma via engarrafada – como em qualquer horário de pico na cidade de São Paulo:

“E o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) que a Prefeitura assinou com o Ministério Público? É proibido fechar a Avenida para carros”

O TAC foi assinado em 2007 entre a Prefeitura de São Paulo e o Ministério Público limitando a autorização de mega eventos na Avenida Paulista para apenas três ao longo do ano. Muitas pessoas – inclusive a imprensa – estão confundindo estes mega eventos e suas estruturas com a abertura da Avenida aos domingos. Consultamos, portanto, o jurista Paulo Lowenthal, um dos especialistas na área. Vejam a resposta:

“Observamos que, por mais que o MP-SP possa ter o ânimo de utilizar esse TAC para tentar impedir a abertura da Paulista, nos parece que ele é inaplicável. Vejam que o texto do TAC se refere a realização de ´eventos´, definindo a quantidade de 3 autorizações por ano na Av. Paulista.  

O TAC define evento da seguinte forma: ´manifestações, comemorações ou outras atividades de duração prolongada que impliquem obstrução dessa via pública e que necessitem de autorização da Prefeitura´. Desse modo, o TAC não se aplicaria quando não existirem “promotores do evento” a serem autorizados, como é o caso da determinação, do próprio Poder Público, de restringir o trânsito de veículos automotores permitindo a fruição da via pública pelas pessoas.

Tanto é assim que o TAC prevê à Prefeitura obrigações como ´formalizar contrato com os promotores´, exigir dos mesmos ´indenizar danos ao mobiliário urbano´, exigir que ´evite o acionamento de dispositivos sonoros nas proximidades de hospitais´, dentre diversas outras exigências,  impondo, ao final, ´multa por omissão em fiscalizar e fazer cumprir as obrigações impostas aos promotores dos eventos´.

Enfim, o conteúdo do TAC parece absolutamente inaplicável no caso da abertura da Paulista às pessoas, pois a abertura da Paulista não parece se enquadrar com o cenário nele previsto: eventos realizados por um promotores específicos, visando comemorações ou manifestações.

Logo, não seria aplicável ao caso, dado que na abertura da Paulista o seu “promotor” é o próprio Poder Público, não entrando no limite de três autorizações por ano”.

“Sem a Avenida Paulista o trânsito de São Paulo vai parar de vez no domingo”

Aos domingos o volume de tráfego em São Paulo cai intensamente. Mesmo aos sábados. Segundo a CET-SP, aos domingos o volume de tráfego nas ruas da cidade cai mais de 30%. Isto porque o paulistano adota outros comportamentos aos domingos e ficamos menos dependentes do uso do automóvel. A Avenida Paulista possui alternativas que são comprovadamente suficientes para suprir a abertura aos domingos. As duas paralelas imediatas da Avenida Paulista, a Rua São Carlos do Pinhal e a Alameda Santos, por exemplo, possuem 3 faixas de rolamento cada uma. Segundo técnicos da CET elas já teriam capacidade suficiente, aos domingos, para suprir a demanda de automóveis desviada da Avenida Paulista.

“Mas fecha-se a Avenida Paulista e todas as outras vias ficam travadas”

A engenharia de tráfego e a própria psicologia comportamental já estudaram isto. Em São Paulo o conhecimento acumulado nesta matéria é suficientemente grande para podermos afirmar que uma “interrupção” consentida e conhecida por todos produz um efeito muito interessante: os motoristas buscam alternativas pois já sabem que, naquele dia, o acesso àquela determinada via estará interrompido. Se eles não sabem, o aplicativo Waze sabe e indica outras rotas. Como o sistema viário de São Paulo é bastante extenso e aos domingos o volume de tráfego é bem menor, a conclusão é que o tráfego que passaria pela Avenida Paulista aos domingos seria imediatamente absorvido pelas demais vias. É isto o que ocorre todos os dias com a abertura do Minhocão a partir das 21h30 e aos sábados, agora, a partir das 15h. É isto o que ocorre com feiras de rua, com as centenas de vias que são parcialmente abertas para as pessoas participarem de corridas de rua, só para citar alguns exemplos.

CONCLUSÃO

Proponho que a gente olhe menos para a Avenida Paulista como uma artéria do sistema viário de São Paulo e mais como um espaço público de diversos usos do sistema humano de São Paulo. Abertura da Avenida Paulista já!

Foto: Rachel Schein
Foto: Rachel Schein