O atropelamento do senhor Florisvaldo Carvalho por um ciclista, na última terça-feira, suscitou uma catarse de odiosas manifestações e posicionamentos apaixonados sobre a importância das ciclovias e da inclusão da bicicleta como política pública na cidade de São Paulo.
O atropelamento foi um fato lamentável, é inegável. Mas igualmente lamentável foi a cobertura de parte da imprensa e as manifestações acaloradas da resistência motorizada paulistana desde o ocorrido.
Enquanto a polícia civil iniciava o inquérito para apurar o ocorrido, os principais veículos jornalísticos do país já haviam feito suas próprias apurações, seguidas de julgamento e condenação. A culpa, muito óbvia, é do mais novo vilão das cidades: o conflito entre ciclistas e pedestres.
Conflito este que, do ponto de vista estatístico, é irrelevante. Não que uma morte seja irrelevante, claro que não; afinal defendemos uma agenda pública para zerar mortes no trânsito. Entenda com clareza, nobre leitor, a reflexão que proponho: insistir na ideia de que há um conflito – ou uma guerra – entre ciclistas e pedestres, como muitos querem fazer crer, é o mesmo que dizer, em plena epidemia de dengue, que o grande vilão da saúde pública no Brasil é a sinusite.
Segundo dados do DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre), o trânsito brasileiro mata mais de 52 mil pessoas todos os anos nas estradas, rodovias, avenidas e ruas do país. Ou seja, em 1 ano o Brasil acumula, em números de mortos no trânsito, o mesmo do que 4 anos de mortos no auge da guerra do Iraque.
- Mas quem está matando tanto?
Nacionalmente, em atropelamentos e colisões com vítimas, os automóveis têm participação superior a 50%. Na cidade de São Paulo, dos 555 pedestres mortos no ano passado, 200 deles foram mortos atropelados por automóveis, 114 por ônibus, 90 por motocicletas, 31 por caminhões e 2 por bicicletas. Ou seja, bicicletas foram, em 2014, os veículos atropelantes em 0,37% dos casos seguidos de morte.
Como uma morte grita mais alto do que uma estatística, para não ter que lidar com números de guerra uma parte da sociedade paulistana encontrou a cortina de fumaça ideal para não ter que lidar com seus fantasmas, que poderiam colocar em risco seu privilégio inalienável, pseudo constitucional, de transformar as ruas da cidade em autoramas desertos.
Diferentemente da tradição da fundação da cidade de Roma, onde os irmãos gêmeos Rômulo e Remo – outrora companheiros e parceiros – foram estimulados e provocados pelos espectadores e futuros moradores de Roma a duelar entre si para fazer valer suas vontades egóicas, o conflito ou a disputa entre pedestres e ciclistas não prosperará na história de São Paulo. Assim como não prosperou em lugar nenhum do mundo.
Quem aposta neste caminho ou age de má-fé, visando a separação e a briga entre irmãos, ou encontrou neste caminho o conforto necessário para conseguir deitar a cabeça no travesseiro e dormir sem ter que refletir sobre a carinificina da qual somos participantes diretos ou fiéis depositários.
God save the queen, she ain’t no human being”
Ciclistas por vezes trafegam na calçada; pedestres atravessam a rua onde convém e parece mais seguro. Ciclistas utilizam trechos de contramão; pedestres atravessam quando está livre, mesmo se o semáforo estiver vermelho para eles.
É assim, sempre foi assim, continuará sendo assim, pois a regra imposta para o desenvolvimento urbanístico e de mobilidade urbana historicamente atendeu a um apelo uníssono: o de fazer mais carros circularem mais rápido por mais lugares.
Pedestres, ciclistas, cadeirantes, skatistas, todos estes que se deslocam com a sua própria energia – a “propulsão humana”, segundo as letras do Código de Trânsito Brasileiro – estão a todo instante mendigando por espaço e pedindo licença.
Faixas de pedestre são “pinguelas no vale da morte”, como diria o genial João Lacerda; ciclovias são migalhas dentro de um sistema viário que só aceita a segregação como medida de preservação da vida e do conforto.
Pessoas caminhando, pedalando, deslizando seus skates e patins são os bobos da corte entretendo reis e rainhas motorizados, incólumes, poluentes e sádicos. Na monarquia da mobilidade urbana uma corte minoritária ocupa praticamente toda a riqueza do sistema viário. E isto só é possível na base da opressão, da desigualdade e da violência.
A banda Sex Pistols cantaria: “God save the queen, she ain’t no human being”. De fato a rainha não é um ser humano, é uma máquina de 1 tonelada que acelera de 0 a 100 km/h em questão de segundos.