São Paulo: crimes e reações às avessas

Por Daniel Guth

ZONA LESTE

Sábado, 7h40. Uma senhora foi atropelada por um motorista ao atravessar a Avenida Marechal Tito – na altura do mercado Assaí. Ela voltava para casa com um saco de laranjas que foram esmagadas pelo carro, juntamente com o seu crânio. O motorista estava embriagado.

O caso, chocante, causou comoção no bairro e moradores sairam às ruas para pedir a desativação definitiva da Avenida. “Queremos que ela vire um calçadão ou um parque linear”, defendeu uma moradora. “Não dá mais! Ano passado foram 11 pessoas atropeladas e mortas só aqui nesta avenida. Não queremos mais carros aqui”, gritou um outro morador.

 

ZONA SUL

Hoje faz duas semanas que o Prefeito de São Paulo inaugurou um viaduto novo ligando a zona oeste com a zona sul. Ontem, um ciclista de 14 anos foi atropelado por um caminhão que seguia pelo viaduto em alta velocidade para acessar a Avenida João Dias. Foi o segundo caso de atropelamento em duas semanas no recém inaugurado viaduto.

Os pais do garoto e toda a comunidade local se organizaram para pedir a demolição imediata do viaduto. “Não dá para aceitar mais uma obra que só atende quem usa carro na cidade”, defendeu o presidente da associação de moradores. “Não percebem que morrem mais de mil e duzentas pessoas por ano na cidade? Ninguém se importa mais? Meu filho virou estatística?”, manifestou o pai do garoto, ainda muito abalado com o ocorrido.

 

NO JUDICIÁRIO

Os dois casos foram investigados pela Polícia Civil do Estado de São Paulo. No primeiro caso, da Zona Leste, o delegado responsável indiciou o motorista por homicídio doloso duplamente qualificado. “Ao pegar o carro embriagado o motorista fez o que chamamos informalmente de ‘roleta russa’ com a vida dos outros. Não prestou socorro e ainda se utilizou de meio cruel – no caso o carro, em alta velocidade – para praticar seu crime. Esperamos que o poder judiciário faça justiça à família da senhora”, respondeu o delegado em coletiva de imprensa.

No segundo caso, da Zona Sul, o delegado responsável encaminhou ao Poder Judiciário indiciamento parecido, sem os qualificadores. “Entendemos que o motorista do caminhão, ao trafegar em velocidade acima da regulamentada, assume o risco de matar por não dar condições de antecipar o evento ocorrido. No trânsito, é responsabilidade do mais forte zelar pelo mais fraco, e a legislação brasileira é bastante clara neste sentido”, defendeu o delegado. O motorista também foi indiciado por homicídio doloso. Ambos responderão os processos encarcerados.

Sensibilizados com os crimes, promotores do Ministério Público do Estado de São Paulo, com apoio e endosso de diversas organizações da sociedade civil, apresentaram duas denúncias à Justiça contra a Prefeitura de São Paulo.

A primeira diz respeito à preservação da vida, questionando os números alarmantes de mortes no trânsito e o que a Prefeitura tem feito para reduzi-los. “Queremos saber por que a Prefeitura de São Paulo ainda não adotou a agenda Vision Zero na cidade, em que nenhuma morte no trânsito deve ser tolerada”, destacou um dos promotores.

A segunda denúncia questiona os valores e o interesse público das obras viárias na cidade, destacando que viadutos, pontes e túneis, construídos para trânsito exclusivo de veículos motorizados, representam “uma política atrasada e injusta socialmente, pois privilegiam poucos e só estimulam os meios de transporte que notadamente possuem externalidades perniciosas para a cidade, como mortes, poluição e engarrafamentos”.

 

CONCLUSÃO

Os casos acima não são verídicos. Leia e assista qualquer notícia – em portais, jornais, revistas, canais de tv – e verá que todo o sistema de comunicação, de organização da sociedade e dos três poderes segue cegamente a cartilha da opressão e da desigualdade.

NA IMPRENSA: Mariana Livinalli, modelo, 25 anos, foi atropelada por um ônibus e morreu (isso, infelizmente, é verídico). Na notícia, a culpa é sempre ou da própria vítima, porque “estava sem capacete”, ou “das ciclovias”. Ninguém lembra que as ciclovias são uma política pública vital justamente para garantir a segurança e o conforto de quem usa a bicicleta como meio de transporte – e que um atropelamento brutal como esse tem outra causa; aconteceria com ou sem ciclovia.

NO JUDICIÁRIO: Thor Batista, que desintegrou o corpo de uma pessoa ao atropelá-la, dirigindo em alta velocidade, foi absolvido. Ivo Pitanguy, que atropelou e assassinou um trabalhador, enquanto dirigia embriagado, responde ao processo em liberdade. Alex Siwek, que, voltando bêbado da balada, atropelou e decepou David Santos, fugiu sem prestar socorro e ainda jogou o braço da vítima num córrego, respondeu a “crime de trânsito” e segue livre, condenado a penas brandas. E em alguns anos já receberá a CNH de volta.

ENQUANTO ISSO: em novembro próximo, o Brasil sediará encontro da ONU sobre a Década de Ações para a Segurança do Trânsito, evento de apresentação e discussão dos resultados dos primeiros cinco anos deste protocolo internacional, assinado em 2010.

A meta desta década, para todos os países signatários, é a de reduzir pela metade os números de mortos no trânsito, a partir dos dados de 2010. Com mais de 60 mil mortos no trânsito todos os anos, e em primeiro lugar neste vergonhoso ranking mundial, com que cara (de pau) o Brasil vai apresentar seus resultados?

Que resultados?