Para o advogado e ciclista Alvaro Neil, São Paulo precisa de medidas mais drásticas de desestímulo ao uso do carro.
Alvaro Neil não é apenas mais um ciclista passando por São Paulo. É uma pessoa que deixou sua cidade há mais de 10 anos para viver seu sonho: viajar pelo mundo com sua bicicleta.
Vivendo em cima de uma bicicleta de 75 kg e com 800 reais por mês, Álvaro já completou 148 mil quilometros rodados, 83 países pedalados e não vai parar agora. “Daqui de São Paulo vou a Mariana (MG), depois Rio de Janeiro, volto para São Paulo e depois não sei para onde vou. Dos continentes, só me falta a Europa. Ela é a sobremesa, deixei para o final”.
Alvaro nasceu em Oviedo, na Espanha, mesma cidade do corredor de Formula 1 Fernando Alonso. “Ele anda de carro pelo mundo. Eu ando de bicicleta”.
Advogado por formação, cansou do trabalho protocolar e burocrático em um cartório e foi em busca de seu sonho, ainda em 2001. “Primeiro fui fazer um teste e viajei até a Bolívia, depois Argentina, Peru, Equador, Colombia, Venezuela e Brasil. 31 mil quilometros. Terminei a viagem e pensei ‘é isso o que eu quero; eu acho que essa vida é boa’”.
Voltou para sua cidade, trabalhou como bike courrier para manter o condicionamento físico e decidiu que em Novembro de 2004 deixaria mais uma vez sua vida em Oviedo para trás, para se aventurar pelo mundo por mais 10 anos – ou indefinidamente.
Quase 11 anos depois de deixar sua cidade natal, Alvaro está de passagem por São Paulo. Hospedado na casa de uma amiga em comum, fui até seu encontro para conversarmos sobre a bicicleta no mundo e como ele vê os desafios por que São Paulo está passando. Segue a entrevista, quase na íntegra:
– Você deixou sua cidade assim, sem rumo? Você tinha uma ideia de países, percursos?
Tinha a ideia de dar a volta ao mundo em 10 anos. Fazendo apresentações de palhaço, de graça, para pessoas doentes, carentes, humildes, ou crianças da rua, orfanatos, cadeias. Para beneficiar pessoas que estão sofrendo. A ideia [da volta ao mundo] era 2004 a 2014. Mas agora vai ser 2004 a 2017.
Nestes anos percorri a África, Oriente Médio, Ásia, sudeste asiático, China, Mongólia, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Havaí, Alasca, desci toda a América até Ushuaia, subi e agora estou no Brasil.
No Japão, o tsunami aconteceu quando eu estava lá. Já peguei quatro malárias cerebrais, tive um acidente de bicicleta e já troquei 3 vezes de bicicleta nestes anos.
Desde 2004 já foram 148 mil km de bicicleta, 70 apresentações de palhaço, mais de 20 palestras pelo mundo falando do projeto. Escrevi 5 livros e fiz 5 documentários até hoje.
– E como foi sua chegada em São Paulo?
Eu tento evitar acessar as cidades grandes de bicicleta. Porque é perigoso mesmo. Um amigo que conheci em 2003, quando estava pedalando pela primeira vez na América do sul, um dia me disse ‘de Santos para São Paulo não tem uma estrada para bicicleta. Não é possível acessar São Paulo de bicicleta vindo de Santos, por exemplo’. Tem duas cidades no mundo que são impossíveis de acessar de bicicleta: São Paulo e Las Vegas.
“Tem duas cidades no mundo que são impossíveis de acessar de bicicleta: São Paulo e Las Vegas”
– Como você vê a São Paulo de 2003 com a de 2015, comparativamente?
Na Espanha dizemos o seguinte: no reino dos cegos quem tem um olho é o rei. Se você não tem nada, qualquer coisa é um avanço.
Em Guadalajara (México) o Secretário de Segurança Viária me chamou para dar uma palestra para falar da minha viagem e para incentivar o uso de bicicleta. Eu falei para ele – ele não gostou, mas eu falei mesmo assim – que a questão não é fazer mais quilômetros de ciclovias, mas sim fazer as pessoas usarem os quilômetros que já foram feitos. E que sejam bem feitos! Guadalajara, no México, está vivendo algo parecido com São Paulo. Parecem estar mais preocupados mais com quilômetros de ciclovias do que com a qualidade da implantação.
– Dos países e cidades que você passou, quais chamaram sua atenção pela qualidade do sistema cicloviário?
Em Austin, no Texas, eu fiquei muito impressionado. Ciclovias bem feitas e com boa manutenção. Não são ciclovias feitas no cantinho, onde sobrou espaço. Eles tomaram espaço e destinaram para as bicicletas.
– Tirando espaço dos carros?
Claro! Eu não acredito no que as cidades se transformaram. Estão colocando uma propriedade privada para ocupar um espaço público através dos estacionamentos nas ruas. Não é justo. Da mesma forma eu poderia pegar o sofá da minha casa, ir até a rua e estacionar o meu sofá e fazer um churrasco com meus amigos. É espaço público! Para circular e não para estacionar. Então a Prefeitura pode tirar os milhares de carros que estão estacionados nas ruas para fazer ciclovias nestes locais. Já tem o espaço, não é preciso construir espaços novos.
“Estão colocando uma propriedade privada para ocupar um espaço público através dos estacionamentos nas ruas. Não é justo”
Numa cidade no México eu vi alguns ciclistas, à noite, indo para as ruas e pintando ciclofaixas pela cidade. No dia seguinte os taxistas já estavam respeitando, achando que eram ciclofaixas oficiais.
Esta é uma coisa que poderia ser reforçada: a lei que vocês têm aqui no Brasil, do artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro. A traseira dos ônibus, por exemplo, poderia ter esta informação, destacando o 1,5 m de distância ao ultrapassar um ciclista. Eu vi isto nos EUA, nos carros de polícia: ‘dar 3 feet de distância [aprox. 92 cm]. É a lei.’ Não é uma ideia, uma proposta, é a lei. Um carro da polícia circulando o dia todo pela cidade é uma publicidade incrível, além de dar seriedade para a mensagem. Isto poderia ser feito aqui.
– Para além das ciclovias, de todas as cidades e paises visitados, quais chamaram mais a sua atenção no quesito quantidade de pessoas usando bicicleta como transporte?
A cidade de Uagadugu, capital de Burkina Faso. A cidade de Kampala, em Uganda. Hanói, no Vietnam. E Havana, Cuba.
Mas veja que não são cidades de primeiro mundo. O sistema capitalista nos fez pensar que a bicicleta é de pobre: ‘quando você tiver dinheiro, comprará uma moto. Se conseguir mais, comprará um carro. E se tiver mais ainda, comprará um avião’. E o mundo caminhou assim.
A gente esqueceu que a bicicleta é um invento muito útil, assim como o fogo. O fogo, um invento que é antigo demais, não é gostoso? Você pode fazer uma fogueira, na praia, com os amigos, mesmo sabendo que existe calefação elétrica. Com a bicicleta é a mesma coisa.
Para cidades como São Paulo, Madrid, Bogotá, a bicicleta não é uma opção. É uma necessidade. Não deve ser um programa eleitoral, a bicicleta é uma solução para o problema do tráfego nas cidades pelo mundo.
“Para cidades como São Paulo, a bicicleta não é uma opção. É uma necessidade”
Na China, em Shangai, há 5 anos tinha muitas bicicletas. Agora é um tráfego infernal. Todo mundo tem carro. E não dá, a cidade não comporta. Tentar solucionar o problema do tráfego com mais faixas para os carros é como solucionar a obesidade com mais buracos no cinto da calça.
Em Zurique, na Suiça, se você quiser estacionar o seu carro no centro você tem que pagar 10 francos a primeira hora. Segunda hora, 70 francos. Por quê? Não querem o carro, não querem que as pessoas usem carro para circular.
“Tentar solucionar o problema do tráfego com mais faixas para os carros é como solucionar a obesidade com mais buracos no cinto da calça”
É inacreditável como os centros históricos das cidades ainda não foram transformados 100% em espaços para pedestres e ciclistas. Está acontecendo, bem devagar, mas precisa acelerar isto. Pois a energia do lugar muda completamente, os comércios vendem mais, as pessoas têm tempo para caminhar.
E o carro é uma arma. E uma arma é como uma droga, como a penicilina. Ela pode salvar a sua vida, mas também pode te matar. O carro é tanto a ambulância, que salva vidas, como o veículo que pode te matar. Por que os carros não têm, nas portas, aquelas mensagens que constam no maço do cigarro? Fumar pode matar. Dirigir também pode matar. Coloque isto nas portas dos carros e verá quantos carros vão vender.
“Por que os carros não têm, nas portas, aquelas mensagens que constam no maço do cigarro? Fumar pode matar. Dirigir também pode matar”
– Quais medidas de desestimulo ao uso do carro você indicaria para São Paulo?
Primeiramente tirar os estacionamentos das ruas, pois os carros estacionados são uma propriedade privada ocupando espaço público. Tem que ser caro usar o carro, para as pessoas começarem a repensar seu uso.
O rodízio de São Paulo, por exemplo, não funciona. Um amigo meu paulistano, quando é seu dia de rodízio, vai até a casa da tia e pega o carro dela para usar. Em muitos países eu vi isto: o rodízio fez com que aumentasse o número de carros, pois as pessoas ou começaram a comprar um segundo carro, ou passaram a usar os carros que ficariam parados nas garagens.
O carro é o inimigo das cidades. Qualquer medida que desincentive o uso de carro e potencialize o uso de bicicleta é necessária.
“O carro é o inimigo das cidades”
Outra medida importante é fazer com que as pessoas que estejam tirando carteira de condutor pedalem. Não é possível dirigir um automóvel sem saber pedalar uma bicicleta. Para tirar a licença de capitão de barco, de navio, você tem que saber nadar. Para dirigir no tráfego, onde você está em contato com ciclistas, deveria ser obrigatório saber pedalar. Para saber o que os ciclistas vivenciam no trânsito. A experiência que eu vi em Fortaleza, dos motoristas de ônibus que são colocados em cima de uma bicicleta estática para levarem uma “fina” de um ônibus, é fantástica. Muda o comportamento do motorista.
– Em cidades que são muito motorizadas, como São Paulo, como você imagina que as pessoas se sentem?
Há pessoas que passam 4h paradas no trânsito. Como você acha que se sentem? Eu costumo dizer que o carro muda a personalidade das pessoas. Coloca o Dalai Lama, aqui em São Paulo, dirigindo um carro. No quarto dia o Dalai Lama estaria gritando ‘filho da puta, sai da frente!’. Isto porque o carro muda totalmente a personalidade das pessoas. Você dá tudo o que tem de ruim para uma máquina. E tudo o que acontece ao redor do carro não é humano.
“Coloca o Dalai Lama, aqui em São Paulo, dirigindo um carro. No quarto dia o Dalai Lama estaria gritando ‘filho da puta, sai da frente!’”
Com a bicicleta você pode ver as pessoas, sorrir, falar com elas, promover saúde, fazer alguma atividade física. Na França estão pagando os trabalhadores para usarem bicicleta, instalando bicicletários com chuveiros e banheiros. A bicicleta não é uma opção, é uma necessidade. Os Prefeitos que não viajam, não estão vendo as coisas boas acontecendo pelo mundo.
– Você já pedalou bastante por São Paulo nestes últimos dias. E já deve ter testado os tipos de ciclovias que temos – canteiro central, ciclofaixas, calçadas compartilhadas, etc. Como você se sentiu ao pedalar em cada uma destas diferentes estruturas?
Acho que os modelos devem se adaptar às condições. Se não é possível fazer no canteiro central, então que se faça do lado das calçadas. A prioridade tem que ser a segurança dos ciclistas. E não podem implementar com a mentalidade de que hoje somente cem ciclistas usarão aquela estrutura. Tem que fazer pensando que a cidade toda vai pedalar ali. Tem que fazer ciclovias amplas e largas. E os ciclistas têm que começar a indicar os problemas das implantações. Em Bogotá eles criaram um site feito pelos cidadãos para indicar os problemas nas ciclovias, e o site é conhecido da Prefeitura. Ou seja, se eu cair em um buraco que alguém já tinha informado, a Prefeitura tem a responsabilidade civil.
“Não podem implementar [uma ciclovia] com a mentalidade de que hoje somente cem ciclistas usarão aquela estrutura. Tem que fazer pensando que a cidade toda vai pedalar ali”
– Qual sua avaliação sobre as ciclovias de São Paulo?
Eu não acho as ciclovias de São Paulo tão ruins. Tem partes ruins. A ciclovia da Avenida Paulista, por exemplo, é muito boa. Mas é a joia da coroa. Mas há ciclovias com troncos de árvore na altura da cabeça dos ciclistas, asfalto quebrado, muitas com falta de proteção lateral e manutenção ruim das tintas e algumas sem nenhuma continuidade. Se a ciclovia não está conectada, ela se transforma numa ilha. Isto precisa ser resolvido.
– Quais as melhores ciclovias que você já conheceu em suas andanças?
Melbourne, na Australia e Austin, no Texas.
– Como você vê o Brasil de agora?
O Brasil é um dos piores países para pedalar. Muito agressivo. E eu sinto a mesma agressividade no trânsito hoje do que eu senti 12 anos atrás.