#AgoraÉQueSãoElas: Há menos mulheres pedalando nas nossas grandes cidades. Por quê?

Por Daniel Guth

Por Ana Carolina Nunes* e Marina Harkot**

Dentro e fora do cicloativismo, persiste uma notável falta de compreensão sobre o desequilíbrio de gênero no uso da bicicleta. Ás vezes, entretanto, a resposta está mais perto do que você imagina

Foto: Rachel Schein/Página da Rachel
Foto: Rachel Schein/Página da Rachel

Mesmo que um dos primeiros nomes que vêm à cabeça quando se pensa no cicloativismo brasileiro seja o de uma mulher, Renata Falzoni, é leviano dizer que a igualdade entre os gêneros reina soberana nesse meio de mentes tão visionárias e progressistas. A mesma “vanguarda” que usa e defende aguerridamente a bicicleta como solução para a crise de mobilidade das nossas cidades também não escapa de outros males que atingem o resto da nossa sociedade: (1) a baixíssima quantidade de mulheres que pedalam para se locomover; (2) a discriminação e o assédio – tanto no dia-a-dia das ruas quanto entre os pares do ativismo – e (3) a baixa representatividade feminina nos espaços de discussão acerca do tema. E, claro, a não-compreensão ou mesmo silenciamento das questões específicas que nós colocamos nas rodas de conversa.

Ao analisar 40 contagens de ciclistas realizadas em grandes cidades ao redor do Brasil, observa-se uma média de apenas 7% de mulheres pedalando. Já a pesquisa realizada pela Ciclocidade em agosto de 2015 mostra que na cidade de São Paulo apenas 14% dos ciclistas entrevistados são mulheres, com um percentual máximo de 23% na área central. Apesar da discrepância entre homens e mulheres, há pouca diferença em relação ao envolvimento com acidentes, frequência de uso e distância média pedalada. Se está provado que os gêneros têm hábitos semelhantes no pedal, onde estaria a raiz da desses números tão discrepantes? E assim, recai novamente a culpa sobre a cultura e a estrutura machista da sociedade.

Desde pequenas, são negadas às meninas certas atividades que não correspondem às expectativas sociais. Aquelas que têm a sorte de experimentar a liberdade sobre duas rodas logo cedo veem-se pressionadas por regras comportamentais como “não fazer molecagem”, evitar brincadeiras “de menino” ou “não ficar na rua porque é perigoso”. Mesmo que essas frases não apareçam ligadas diretamente ao contexto da bicicleta, compõem o padrão de valores que levam adultos a regular brincadeiras de garotas com suas magrelas (cor-de-rosa, óbvio). Não por acaso, essa mesma diferença cultural é também reproduzida por muitos cicloativistas – que apontam que mulheres pedalam menos “por terem mais cuidado com a própria segurança e um maior senso de preservação”.

Foto: Rachel Schein/ Página da Rachel
Foto: Rachel Schein/ Página da Rachel

Como se não bastasse sermos podadas da nossa própria infância por sermos mulheres, também continua recaindo sobre nós a maior parte das responsabilidades pelo trabalho doméstico e cuidado da família. Como conciliar a rotina de trabalho – em uma sociedade que sobrevaloriza a imagem imaculada de mulher “arrumada” e “apresentável” – com idas ao mercado, buscar filhos na escola e outras tarefas do lar em grandes cidades onde a cultura da bicicleta ainda é incipiente, a infraestrutura é insuficiente e a violência do tráfego motorizado se materializa na forma de “finas educativas” constantes?

Às questões de compartilhamento de espaço viário enfrentadas por todos os ciclistas, somam-se situações bizarras de assédio e intimidação. Se campanhas como #PrimeiroAssédio escancararam nos últimos dias pelas redes sociais o que é ser mulher e ter seu corpo invadido desde tão cedo – também em espaços públicos e por completos desconhecidos – não é de se espantar que isso se repita em cima de uma bicicleta. Que mulher nunca trocou a saia por uma calça antes de sair pedalando “por medo de mostrar demais” e ouvir algum “elogio”? Ou o clássico pedido para “ser o banco dessa bicicletinha”? Sem contar as histórias contadas por – pelo menos – alguma mulher próxima sobre mãos bobas pelo seu corpo enquanto pedalavam no trânsito e o “cuidado” disfarçado de mainsplaining quando algum estranho demonstra sua preocupação através de um “gata, vai para a calçada” ou “cadê o capacete nessa cabecinha linda”?

Não fossem suficientes as situações absurdas vividas pelo simples fato de ser uma mulher – e não um homem – em cima de uma bicicleta, o próprio movimento cicloativista não é um lugar imune à reprodução do machismo estruturante das relações entre os gêneros. As discussões sobre o tema vêm conquistando cada vez mais espaço no meio e o surgimento de uma série de grupos que se propõe a discutir a problemática ao redor do país é prova disso. Porém, movimentos como a Massa Crítica Feminista de Belo Horizonte – que formou-se a partir de situações de assédio ocorridas dentro da Massa Crítica de BH – provam que a questão está longe de ser resolvida. Outro ponto a ser notar é a assimetria da composição da Câmara Temática de Bicicleta da cidade de São Paulo: ela é, certamente, uma grande conquista do cicloativismo paulistano em termos de diálogo aberto com o poder público, mas conta com apenas quatro mulheres entre seus 22 integrantes – fato que repete as clássicas (embora de origens culturais) baixas participação e representatividade femininas nessas esferas.

Mesmo a bicicleta sendo vista desde o final do século XIX pelo movimento feminista como um símbolo de libertação e empoderamento, todas essas manifestações de machismo também podem ser o motivo pelo qual as mulheres deixam de pedalar ou se afastam do meio do ativismo. É preciso, no entanto, parar de encarar esses desequilíbrios como fatos distantes, que no máximo mereçam ser “repudiados”. Mais efetivo é desde já identificar e desconstruir práticas machistas do seu cotidiano e em diferentes espaços – desde as reuniões das nossas associações de promoção e apoio ao uso da bicicleta; às oficinas e bicicletarias; Massas Críticas; passeios de bicicleta; fóruns de discussão online; ou diretamente nas ruas como ciclista, pedestre, motorista, passageiro… E o mais importante: entre amigos e em relação às mulheres do seu próprio círculo familiar e afetivo. Para entender porque elas pedalam “como mulherzinhas” você precisa começar entendendo os motivos que as afastam do seu mundo cool da bicicleta.

Foto: Rachel Schein/ Página da Rachel
Foto: Rachel Schein/ Página da Rachel

* Ana Carolina Nunes é uma mulher que nunca concordou em falar baixinho. Jornalista e pesquisadora da área de políticas públicas, adora percorrer a cidade com a energia do seu próprio corpo. Caiu de paraquedas na área de mobilidade, mas decidiu se dedicar a valer ao ativismo porque acredita que lugar de mulher também é discutindo transporte, cidade e espaço público.

** Marina Harkot é mulher, socióloga e pesquisadora na área de política urbana. Há algum tempo voltou a pedalar por aí e percebeu que o jeito como as cidades foram construídas têm tudo a ver com questões enfrentadas pelo gênero feminino nesse ambiente – e não parou mais. Faz parte do Grupo de Trabalho de Gênero da Ciclocidade e não cansa de tentar incentivar amigas, conhecidas e – sobretudo – desconhecidas e experimentarem a liberdade da bicicleta.