Carros vs não-carros

Por Daniel Guth
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Não carro circulando em via pública (Foto: Rachel Schein/Página da Rachel)

A literatura sobre mobilidade urbana está repleta de terminologias e conceitos que dizem pouco sobre a mobilidade em si e muito sobre a nossa subserviência ao modelo rodoviarista vigente durante a maior parte do século XX.

Modelo rodoviarista que, infelizmente, ainda povoa nosso imaginário e coloniza a linguagem e que pode ser observado, por exemplo, ao abrir o jornal e se deparar com a frase “Homem morre em acidente e motorista arrasta bicicleta por 30 km”; ou quando nos surpreendemos, em um evento público do Ministério das Cidades, com técnicos(as) se referindo às bicicletas como “não motorizados” (como mostra esta apresentação oficial realizada em audiência na Câmara dos Deputados).

O uso de termos supostamente técnicos e correntes como não motorizados, acidentes de trânsito, leito carroçável e usuários de bicicleta, suscitam uma discussão dialética importante sobre a mobilidade urbana contemporânea.

O Código de Trânsito Brasileiro (lei nº 9.503/97), já em seu artigo 1º evidencia o que tecnicamente é entendido como trânsito:

§ 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

Ora, se o Código de Trânsito Brasileiro considera trânsito a utilização das vias por pessoas, por que, então, as terminologias da mobilidade são norteadas por vocábulos e conceitos relativos ao modos motorizados de transporte?

Trata-se, mais uma vez, não de uma problematização inócua e exagerada, mas sim de uma agenda importante de afirmação do que a própria lei maior sobre o trânsito já diz. O subjugamento à lógica rodoviarista a que nos sujeitamos diariamente nas ruas das nossas cidades – pedindo licença aos motoristas para conseguir atravessar uma rua, implorando ao poder público por segurança e conforto mínimos para poder se deslocar de bicicleta – só reforça a necessidade de uma revisão completa das terminologias e conceitos sobre mobilidade urbana, ainda hoje devotados aos carros e seus condutores e planejadores.

Os tópicos abaixo não visam a esgotar o assunto, mas propõem uma reflexão entorno do debate necessário e contemporâneo sobre a linguagem e as práticas sociais na área da mobilidade urbana. Vamos a eles:

“Acidentes de trânsito”

Este é definitivamente o termo mais utilizado para se referir a atropelamentos e colisões. Todos os dias vemos “acidentes de trânsito” acontecendo, mesmo quando estamos falando de homicídios. Vejamos o que diz o dicionário Houaiss sobre o vocábulo “acidente”:

acontecimento casual, inesperado, fortuito

Um(a) motorista embriagado(a), em alta velocidade, atropela e mata um(a) pedestre. Seria este um acontecimento casual, inesperado, fortuito? Vamos além: digamos que alguém resolva comprar um revolver e sair às ruas com ele, carregado, e comece a brincar de mirar nas pessoas. Se o gatilho subitamente disparar e uma bala atingir alguém, será este também um acontecimento casual, inesperado, fortuito?

Como muito bem escreveu Gregorio Duvivier em sua coluna aqui na Folha, “blindado no carro, mato quem quiser e saio ileso – inclusive da Justiça”. Atropelamentos ou colisões só podem ser considerados “acidentes de trânsito” depois da perícia e do processo transitado em julgado. Antes disto devem ser tratados pelo que são, objetivamente: colisões ou atropelamentos. Ou, como ilustrou Woodrow Phoenix sobre a iminência de ser assassinado por um carro ao transitar a pé, “imagine que você está andando por uma rua onde todos os edifícios têm pianos pendurados para fora, pendendo sobre sua cabeça”.

O esvaziamento até a ausência de culpa e o processo de aceitação dos crimes de trânsito como meros acidentes, acontecimentos casuais e fortuitos, levou-nos a uma preocupante apatia que blinda nossa capacidade de indignação com o fato de termos, no Brasil, mais de 50 mil mortos no trânsito todos os anos, segundo dados do DPVAT.

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“Autocracia” (Ilustração: Woodrow Phoenix/Autocracia)

“Carro desgovernado atropela pedestre”

Para banalizar os crimes de trânsito e transformá-los em acidentes, quanto mais distantes eles estiverem do fator humano, melhor. A trágica notícia de um atropelamento, por exemplo, noticiada como se carros não tripulados estivessem atropelando pessoas pelas ruas, contribui sobremaneira para a banalização destes crimes.

O atropelamento, nestes casos, é causado pelo condutor ou pela condutora do veículo, e não pela iniciativa espontânea da máquina. A não ser que transformers ou os carros não tripulados do Google já estejam circulando por aí e ninguém nos avisou.

Seguem três exemplos de reportagens com esta abordagem em veículos (de imprensa) de grande circulação: “Carro desgovernado atinge banca de pastel”,  “Câmera registra carro desgovernado que atropelou pedestres”, “Carro desgovernado atropela três homens na calçada”.

“Não-motorizados”

– Bom dia, eu gostaria de falar com o não-Carlos.

– Quem?

– O não-Manoel.

– Não sou eu.

– O sr. não é o não-João?

– Com quem o Sr. quem falar, afinal?

Referir-se à mobilidade por bicicleta ou à mobilidade a pé como “não-motorizados” é, talvez, o símbolo máximo da subserviência ao rodoviarismo. Não se trata apenas da necessidade de afirmação dos modos ativos de deslocamento, mas de questionar, afinal, quais são as prioridades para a mobilidade urbana no país e porque o balizador-ideal-padrão do deslocamento na cidade (e de sua linguagem) ainda é o motor.

A Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12) já em seu artigo 3º escancara a incoerência:

§1º São modos de transporte urbano:

I – motorizados; e

II – não motorizados.

E, no artigo 6º, aponta as diretrizes:

A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes diretrizes:

II – prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado;

Imaginem, leitoras e leitores, se no texto da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, por exemplo, os negros fosse chamados de não-brancos. Ou se a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres se chamasse Secretaria Nacional de Políticas para as não-homens.

Alguns poderão afirmar que a agenda afirmativa e de opressão é distinta entre os exemplos acima citados. Evidentemente que as agendas são distintas, cada uma com sua necessidade de afirmação, identidade e reparação histórica, mas é inegável a opressão do desenvolvimentismo rodoviarista – aliado à tecnocracia neo-liberal – que marginalizou, ao longo dos anos e especialmente durante o século XX, todos e todas que buscavam outras formas de deslocamento que não os automóveis.

A pergunta que surge é: quais seriam os termos conceitualmente corretos para se referir (e valorizar) a quem se desloca a pé, em bicicleta, triciclo, skate e patins? Organizações da sociedade civil têm utilizado termos como “modos ativos de transporte”; o Código de Trânsito Brasileiro se refere às bicicletas como “veículos a propulsão humana”. Ou seja, a referência não é mais o motor ou a queima de combustível, mas sim a energia metabólica e a interação do corpo com a cidade.

“Transporte alternativo”

Na mesma linha de raciocínio dos “não-motorizados”, utiliza-se o termo “transporte alternativo” para se referir a todos os modos de deslocamento que não sejam motorizados (individuais ou públicos). As viagens feitas a pé ou em bicicleta, por exemplo, estariam contempladas como alternativas. Vamos ao dicionário Houaiss, mais uma vez, para verificar o significado de alternativo:

  • capaz de funcionar como outra resposta, remédio, saída etc;

  • que se propõe em substituição ao sistema cultural, técnico ou científico estabelecido;

  • que representa uma opção fora das instituições, costumes, valores e ideias convencionais

Imaginando que os homens (Homo) já eram bípedes, segundo registros ancestrais, há 7 milhões de anos; que as bicicletas foram inventadas e popularizadas a partir de 1818, e que os automóveis foram inventados há menos de 140 anos; quais seriam, portanto, os meios de transporte convencionais e quais seriam os alternativos?

Peguemos os dados da Pesquisa de Mobilidade (2012) da região metropolitana de São Paulo como exemplo. A divisão dos modos motorizados x modos ativos é de 25,1 milhões de viagens/dia realizadas por modos motorizados contra 29,7 milhões por modos ativos. Ou seja, há mais viagens realizadas por modos de transporte “alternativos” do que pelos modos “convencionais”.

Concluindo, não apenas os modos de transporte chamados de alternativos são mais antigos, como também mais utilizados. Podemos, então, chamar os automóveis de “sistema alternativo de transporte” a partir de agora?

“Usuário de bicicleta”

O termo usuário remete a um ser passivo da máquina, do motor que o transportará. Ao optar por usar sua própria energia para se deslocar, o indivíduo abdica da noção de usuário de uma máquina, de um sistema, e passa a regrar o seu deslocamento pela lógica da apropriação do espaço público, criando território com seu próprio corpo.

Diferentemente de um condutor de veículo automotor, que é carregado por uma máquina e, dependente desta relação, define seu poder na sociedade, uma pessoa caminhando ou se deslocando com uma bicicleta não é carregada por uma máquina, pois a energia mecânica para se desdobrar em movimento vem do próprio metabolismo, das pernas, do corpo.

Para movimentar os pedais e, portanto, fazer as rodas girarem, o indivíduo não se torna um usuário daquele instrumento mas é o instrumento que se torna parte do seu corpo – otimizando a energia metabólica e a transformando em movimento.

O termo usuário de bicicleta, por conseguinte, é inadequado e, mais uma vez, remete à lógica tecnocrata e de mediação da máquina e do motor.

 

Para concluir, a escravidão do automóvel

*livremente inspirado no artigo Energia e Equidade, de Ivan Illich¹

O uso massivo de energia física – para além da energia metabólica do próprio corpo – é psiquicamente escravizante e desigual por princípio. Não é possível sonhar com uma sociedade igualitária e libertária e seguir insistindo em tecnologias de alto consumo de energia.

Este consumo, para além de uma certa quantidade, reproduz a mesma lógica desigual do sistema viário e de transporte de uma cidade. Ou seja, para que uma pessoa faça uso do carro para se locomover é preciso que muitas outras estejam enlatadas nos coletivos ou espremidas nas calçadas.

Se 30% dos que se locomovem diariamente de carro são responsáveis pela ocupação de 80% do sistema viário da cidade de São Paulo², torna-se analogamente inviável imaginar que automóveis poderiam figurar como solução para a mobilidade urbana. Para que poucos privilegiados possam circular com bastante espaço e conforto, nesta análise, foi necessário impor um sistema opressor e de milhares de pessoas subjugadas a uma narrativa baseada na tecnocracia, no desenvolvimentismo e na infinita ocupação dos espaços públicos por máquinas que, se não estão circulando, estão ocupando muito dos nossos escassos solo e subsolo.

Neste aspecto, e em muitos outros, os carros são máquinas absolutamente escravizantes.

O aumento do consumo de energia, extrapolando os limites da energia que o nosso corpo produz e da capacidade que a natureza tem de se recuperar plena e concomitantemente ao seu fornecimento e ao consumo, nos escraviza e impõe a uma insaciável (e falsamente velada) disputa de poder e controle social sobre a tecnocracia contemporânea.

Resvalam-se, sobre as questões acima, grandes conflitos armados da atualidade e as inequidades da vida em sociedade.

A utopia, força motriz que nos conduz a seguir em frente, passa por repensar e reconduzir a uma nova ordem, onde as aspirações materialistas serão consumadas sem o luxo que vemos e de maneira colaborativa e pouco mecanizada, equilibrando a balança entre força de trabalho, produção e consumo.

As altas velocidades – e aqui não há como não citar as famigeradas marginais Tietê e Pinheiros – garantem aos privilegiados a ilusão de pertencer ao mundo dos grandes consumidores de energia. Não obstante pensar em reduzir os limites de velocidade destas vias se transformou, até o momento, em um cavalo de batalha entre alguns privilegiados e a Prefeitura de São Paulo. Como ousa o Sr. Prefeito confrontar o direito inalienável às altas velocidades dos grandes gastadores de energia?

É imperativo que nos afastemos, pouco a pouco, da lógica escravista e individualista do carro e da queima de combustíveis fósseis, e nos reaproximemos, cada dia mais, daquilo que nos une: nosso corpo e a motricidade humana.

Consumo de energia por passageiro na RMSP

 


 

¹Disponível no livro Apocalipse Motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluido, Ned Ludd (org.)

²Fontes: Pesquisa de Mobilidade (2012) da Região Metropolitana de São Paulo e CET – Companhia de Engenharia de Tràfego