Estadão e seu delírio editorial

Por Daniel Guth

Caras e caros leitores: silenciei. Não por estratégia, mas por acreditar que esta resposta deveria estar publicada no mesmo jornal que a origina e não neste espaço de discussão sobre a bicicleta na cidade.

Refiro-me ao editorial do jornal O Estado de S. Paulo denominado “Delírio Cicloviário”, que dirige críticas diretas a mim, como um dos diretores da Associação Ciclocidade, e à gestão do Prefeito Fernando Haddad, mirando nas políticas cicloviárias e no plano de mobilidade da cidade de São Paulo.

O editorial em questão foi publicado no dia 03 de Abril. Desde o dia 04 venho tentando contato direto com o jornal para que uma resposta, qualquer resposta, seja publicada. Sem sucesso. Mas como o silêncio também é uma eficiente forma de comunicação e, passada a carência de uma semana para que o jornal me respondesse, tomei a decisão de publicar aqui minha contestação em resposta ao editorial.

****

A resposta

Não é de se espantar que o editorial do “Estadão” tenha dedicado, mais uma vez, uma centena de palavras para tentar desqualificar as políticas cicloviárias em implantação na cidade de São Paulo. Esta postura beligerante tem sido sistemática, tanto com as ciclovias quanto com as políticas de melhoria no transporte público coletivo – o que nos leva a concluir que o corpo de editores(as) do jornal segue buscando reforçar sua estratégia política de desinformar, enaltecer o status quo da desigualdade na mobilidade e de minar qualquer tentativa de mudança necessária de paradigma no uso e ocupação das vias públicas.

Esta postura se configura, sobretudo, por uma cega e obsessiva oposição a estas políticas, culminando em textos vazios de argumentos e evidências científicas. É o caso, exatamente, deste editorial, sobre o qual apresento, trecho-a-trecho, algumas respostas necessárias.

Já no primeiro parágrafo o texto anuncia a que veio:

O prefeito Fernando Haddad é mesmo incansável, não para atacar os muitos e graves problemas que São Paulo enfrenta, como seria de esperar porque é sua obrigação, mas quando se trata de lançar ideias e propostas tiradas de seu baú de hábil marqueteiro de si mesmo.

Aqui o editorial incorre em dois equívocos: 1) pressupor que a mobilidade urbana não é um grave problema que São Paulo enfrenta; e 2) afirmar que a construção de uma rede de ciclovias seria um delírio, uma peça de marketing, um rompante de iluminação messiânica do Prefeito Haddad. Ambas afirmações e ilações são incorretas do ponto de vista histórico. Explico-me a seguir.

O primeiro projeto de ciclovia, na cidade de São Paulo, é de 1980. Justamente a ligação Ceagesp – Parque Ibirapuera, que está sendo concluída neste exato momento, com 36 anos de percalços para sair do papel.

Desde a gestão de Luiza Erundina, em 1988, a cidade já acumulou inúmeros planos cicloviários, com metas de implantação. É desta mesma época o surgimento do Night Bikers Club do Brasil, inaugurando o que hoje a imprensa chama de “cicloativismo”. O movimento social em torno da bicicleta, portanto, não é neófito. Menos ainda os projetos cicloviários.

Na gestão Paulo Maluf (1993-1996), por exemplo, mais de 120 quilômetros de ciclovias foram projetadas, sendo que 32 km sairam do papel (a ciclovia da Av. Sumaré é um exemplo desta época). Se considerarmos todo o acúmulo de estruturas cicloviárias planejadas na cidade, ao longo das últimas três décadas, o número supera o total de 1,7 mil quilômetros de ciclovias e ciclofaixas propostas pela Prefeitura no âmbito do Plano de Mobilidade (PlanMob).

Ou seja, a implantação destas estruturas, considerando a história da cidade e o acumulado sobre o tema nos últimos quase 40 anos, seria um delírio do prefeito atual ou um reconhecimento desta agenda acumulada pelo suor e sangue de milhares de paulistanos e paulistanas, organizações e coletivos?

Hoje há 381 km de ciclovias, dos quais 284 km foram implantados por Haddad, total que, se ele cumprir suas promessas, chegará a 400 km ainda neste ano. Faltará 1,3 mil km até aquela data para chegar ao mirabolante 1,7 mil km anunciado.

A meta de implantar 400 quilômetros de estrutura cicloviária, que o editorial chama de “promessas”, foi referendada em programa de governo democraticamente eleito e, desde o primeiro dia da gestão Haddad, é parte do Plano de Metas da Prefeitura de São Paulo – uma obrigação legal imposta às gestões paulistanas desde 2008.

Importante ressaltar também que o então candidato José Serra, que polarizou a disputa no segundo turno com Fernando Haddad, também se comprometeu com a meta de implantar 400 quilômetros de ciclovias na cidade. Nesta matéria do próprio “Estadão, de Julho de 2012, não restam dúvidas sobre a importância da mobilidade urbana e da ciclomobilidade na agenda prioritária da cidade. Pergunto: fosse José Serra o prefeito que estivesse implantando 400 quilômetros de ciclovias, como se comportaria o editorial do jornal? Serra seria criticado, da mesma forma, como um prefeito de delírios cicloviários e ideias marqueteiras tiradas do baú?

Os comentários a respeito dessa proposta feitos por Daniel Guth, um dos dirigentes da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo e entusiasta da expansão das ciclovias, estão em sintonia com a falta de seriedade com que o governo Haddad trata essa questão. Primeiro, diz ele que há interesse e demanda na cidade por mais ciclovias. Onde estão os estudos em que se baseia para afirmar isso? Se eles existem, porque não são apontados e, em caso positivo, o que garante sua qualidade técnica?

Um grande amigo me disse que ter o nome citado em um editorial do “Estadão” tem praticamente a mesma importância de figurar na lista branca do Rodrigo Constantino. Eu ri.

Mas, afinal, o que originou esta ofensiva do jornal? Foi esta reportagem publicada no dia 27 de Março, sobre o Plano de Mobilidade de São Paulo. Uma “aspa” no meio da reportagem foi suficiente para destacar um espaço de grande visibilidade, no jornal impresso, para me criticar. Não que a opinião na reportagem original seja irrelevante ou menor, claro que não, mas o que o editorial exige, a partir de aspas simples que cumprem sua função dentro da narrativa de uma reportagem, é impossível de alcançar. E não faz o menor sentido, aliás, a não ser que toda reportagem, a partir de agora, tenha notas de rodapés com referências bibliográficas e citação de fonte para cada opinião proferida.

Uma conversa de 30 min com a repórter e o resultado foi sintetizado em uma “aspa” de 23 palavras. O que não é um problema em si, mas como poderiam saber os(as) editorialistas se, nesta conversa telefônica de meia hora, eu não citei dados, pesquisas e estudos para o que estava afirmando?

Abro um parênteses para algo que me intriga: a reportagem original, objeto da crítica e análise do editorial, me apresenta como “consultor em mobilidade” e não como um dos diretores da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo. Por que o editorial frisou enfaticamente nossa organização de ciclistas, se ela sequer foi citada na matéria original? Fecho parênteses.

Primeiro, diz ele que há interesse e demanda na cidade por mais ciclovias. Onde estão os estudos em que se baseia para afirmar isso?

Prezadas e prezados editorialistas, seguem alguns – alguns, pois há muito mais – estudos que demonstram que há interesse e demanda por mais estrutura cicloviária na cidade:

  1. Dados sobre padrão de mobilidade (fonte: Pesquisa Origem/Destino – Metrô)
    • Dados gerais região metropolitana de SP, por município e por distrito (viagens e indivíduos) – série histórica
    • Mapas viagens com bicicleta – densidade de viagens
  2. Dados sobre mortes no trânsito (fonte: Relatório Anual de Acidentes Fatais – CET)
  3. Dados sobre contagens de ciclistas (fontes: Ciclocidade, Cebrap e CET)
  4. Dados sobre o perfil de quem usa bicicleta em São Paulo (fonte: Ciclocidade/Transporte Ativo/Observatório das Metrópoles)
    • Pesquisa mais abrangente (1804 entrevistas) já realizada na cidade, contem informações extremamente relevantes sobre o perfil de quem usa bicicleta em SP.
    • Motivos porque as pessoas começam a usar bicicleta e motivos porque continuam usando
    • Características de perfil semelhantes entre os gêneros, rompendo com tradicionais mitos e falácias.
  5. Dados sobre poluição atmosférica e saúde pública (fonte: Artigo “Aspectos da poluição atmosférica na saúde pública” – autor: Dr. Paulo Saldiva)
    • O próprio Dr. Paulo Saldiva, médico e professor da Faculdade de Medicina da USP, autor deste e de outros importantes estudos e consultor da OMS (Organização Mundial de Saúde) para o tema, é um ciclista urbano cotidiano. Por que será?
  6. Dados sobre migração modal (fonte: Pesquisa sobre Mobilidade Urbana – Ibope/Rede Nossa SP/FecomercioSP)
    • 44% das pessoas entrevistadas disseram que passariam a usar bicicleta como meio de transporte “se fosse mais seguro”. Apenas 13% responderam que não usariam a bicicleta “de jeito nenhum”.
    • Segundo a pesquisa, 80% dos(as) condutores(as) de automóveis disseram que deixariam de usar o carro caso houvesse condições adequadas para a migração modal. Mais e melhores ciclovias são apontadas com destaque para incentivar esta migração.

A lista de estudos e pesquisas poderia seguir preenchendo páginas e páginas deste artigo. Para quem estuda o tema, não restam dúvidas sobre interesse e demanda por mais estruturas cicloviárias em São Paulo e em praticamente todas as cidades brasileiras.

Uma premissa básica da mobilidade urbana – que deve ser considerada e compreendida quando se analisa o tema –  é a da indução de demanda. Se mais estrutura viária para circulação de automóveis induz demanda para que mais automóveis sejam emplacados e circulem na cidade (vide exemplo da Marginal Tietê), então mais estrutura cicloviária induzirá demanda para que mais ciclistas circulem na cidade. O que não faltam são exemplo internacionais, aliás. É tão cristalino quanto afirmar que diminuir os limites de velocidade é uma medida eficaz para reduzir mortes no trânsito e melhorar a fluidez do tráfego.

É preciso reconhecer que o sr. Guth tem a atenuante de seguir o mau exemplo dado pelo atual governo municipal, que nunca apresentou à população qualquer justificativa técnica, de comprovada seriedade, para a rápida expansão daquelas vias exclusivas. Em vez de estudos sobre a demanda por esse tipo de transporte – indispensável, já que as ciclovias têm impacto não negligenciável sobre o sistema viário –, a Prefeitura se limitou a dizer, genericamente, que a oferta estimula a demanda.

Considerando que o sistema cicloviário é uma pauta da sociedade desde a década de 1980, conforme indicado no início do artigo; considerando que a cidade já acumulou mais de 1,7 mil quilômetros de projetos de infraestrutura cicloviária ao longo dos últimos 36 anos; considerando que esta é uma pauta que foi referendada pelo voto popular e democrático e consolidada em programa de metas pela Prefeitura; considerando que priorizar os deslocamentos ativos (pedestres e ciclistas, especialmente) é prioridade perante a Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12); considerando que o Plano Diretor Estratégico e o Plano de Mobilidade são os instrumentos legais que norteiam o desenvolvimento urbano de São Paulo e dos sistemas de mobilidade urbana; e, finalmente, considerando que há uma infinidade de dados e estudos que sustentam as políticas públicas de promoção do uso de bicicleta, quais outras “justificativas técnicas”, de “comprovada seriedade” o Estadão busca, senão a evidência de sua própria incapacidade em reconhecer a importância e a urgência desta agenda para São Paulo?

As ciclovias foram implantadas sem planejamento, em meio a um estardalhaço demagógico. Não foi por acaso que elas começaram na região central, em bairros de classe média, até chegar à Avenida Paulista, enquanto patinavam na periferia onde tudo indica que sua necessidade é maior.

Em primeiro lugar parece que o “estardalhaço demagógico” só acontece por editoriais e posicionamentos de parte reativa da sociedade que ainda tem dificuldade em aceitar que a mobilidade urbana precisa, com urgência, de maior equidade na redistribuição dos espaços públicos, visando a democratização e a redução das desigualdades.

Quanto à falta de planejamento, indico a leitura da História dos Estudos de Bicicleta na CET (boletim nº 50, escrito pela arquiteta Maria Ermelina B. Malatesta), uma síntese de boletins e estudos da companhia, que mostram como historicamente são construídos estes projetos na administração pública. Porém, se o editorial se refere a projetos específicos de estruturas, são milhares e milhares de folhas ao todo, de projetos desenhados para cada intervenção realizada. Nós, como associação, já tivemos acesso a alguns destes projetos para consulta pontual. Não me parece crível que um jornal não tenha as mesmas condições de acesso. Caso encontrem dificuldades, a LAI (Lei de Acesso à Informação) está aí e tem se mostrado uma ferramenta excelente para obtenção de dados e informações. Fica a dica.

Não admira também que, em consequência, a maioria das ciclovias do centro esteja quase sempre deserta.

Com que base o editorial afirma que “a maioria das ciclovias do centro está quase sempre deserta”?  Onde estão os estudos em que se baseiam para afirmar isso? Se eles existem, porque não são apontados no editorial e, em caso positivo, o que garante sua qualidade técnica? Considerando as inúmeras pesquisas indicadas acima, os dados apontam para um cenário totalmente distinto ao advertido pelo editorial: um aumento constante e significativo no uso de bicicleta na cidade.

Que boa parte dos ciclistas continue preferindo as faixas dos carros e ônibus e as calçadas, e que a maioria deles se julgue uma classe privilegiada – anda com frequência na contramão, sem equipamentos de segurança e trata os pedestres com a grosseria e a agressividade que condenam nos motoristas de carro. E ai de quem ouse criticá-los.

Ora, se a necessidade maior por infraestrutura está na periferia, segundo palavras do próprio editorial, não seriam justamente as pessoas residentes na periferia as principais beneficiadas por estas estruturas? Se a pesquisa de perfil de quem usa bicicleta em São Paulo (indicada acima) comprovou que quem usa bicicleta em São Paulo, majoritariamente, tem renda entre 1 e 3 salários mínimos, e pedala longas distâncias para chegar ao seu destino, estaria o editorial afirmando que ciclistas da periferia são “uma classe que se julga privilegiada”? Ou concluímos que são vícios de uma narrativa que objetiva apenas a desconstruir as políticas públicas inclusivas de mobilidade?

Com relação ao uso de contramão e calçadas, tenho uma ótima notícia para o jornal: a implantação de estrutura cicloviária praticamente zera este “problema”. Enquanto, em 2010, 20% de quem circulava de bicicleta pela Av. Paulista usava a contramão, após a implantação da ciclovia este número caiu para 1%. Isto mesmo: UM PORCENTO. Se, em 2010, 27% usava as calçadas para se deslocar, em 2015, após a ciclovia, o número caiu para 2%. Segue relatório completo com estes dados.

Ou seja, se a roleta russa de críticas do editorial mirava na desqualificação da rede cicloviária, os dados, estudos e pesquisas concretamente apontam para a necessidade e urgência dela.

 

CONCLUSÃO

O jornal faz questão de desqualificar quem usa bicicleta em São Paulo, impondo-lhes a pecha de petulantes e insolentes foras da lei, bem como de pessoas deslumbradas e áulicas com a gestão Haddad.

Somos áulicos sim. Não com a gestão, tampouco com o Haddad, mas com a agenda da bicicleta e da ciclomobilidade, com as políticas públicas e discussões sobre uma cidade melhor, mais humana, inclusiva, democrática e diversa. Talvez estes sejam conceitos ainda muito distantes da equipe editorial do “Estadão”, áulicos com a agenda de manutenção dos privilégios de poucos, áulicos com o poder econômico que os mantém escravizados na corda bamba da desinformação, do escárnio e das mentiras.