Todas as vias devem estar preparadas para bicicletas, diz coordenadora da CET

Por Daniel Guth

Em entrevista exclusiva ao blog, a coordenadora do Departamento Cicloviário da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), Suzana Nogueira, faz um balanço sobre o sistema cicloviário de São Paulo e sobre o processo de implantação de ciclovias e ciclofaixas em toda a cidade.

Arquiteta e urbanista de formação, Suzana Nogueira entrou na CET em 2013, a convite do Prefeito Fernando Haddad e do Secretário de Transportes Jilmar Tatto, com uma missão nada simples: tirar do papel 400 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas até o final de 2016.

Depois de ter passado por diversas Prefeituras e órgãos públicos, ela sentiu que estava preparada para o desafio. E o encarou de frente. “Uma mulher atuando na área de transportes, e com foco em bicicletas, é um duplo desafio. Primeiro porque você tem que provar a competência e que entende do assunto; segundo porque a bicicleta é um meio de transporte que todos já falaram sobre, mas que nunca havia sido pensada na ótica da mobilidade urbana”, revelou logo no início da entrevista.

Depois de praticamente três anos e meio de gestão, e mais de 300 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas já implantadas, a entrevista foi feita durante o Bicicultura – maior evento nacional sobre ciclomobilidade, que aconteceu há duas semanas em São Paulo – e se configura como o primeiro balanço da gestão cicloviária da cidade de São Paulo feito por alguém da própria CET.

 

Como tem sido o processo de implantação do sistema cicloviário?

A gente que estabeleceu uma meta, lá no início da gestão, de implantar 400 quilômetros de infraestrutura cicloviária, não tinha a dimensão do que isso significaria para a cidade e a importância dos movimentos sociais neste processo. Hoje é bastante evidente os resultados, o número de ciclistas tem aumentado muito.

 

O que falta?

Além da infraestrutura cicloviária, falta a ampliar a compreensão, entre as pessoas, do que significa a inserção da bicicleta como política pública. ‘O que a Prefeitura tem que fazer, incentivar?’ Costumo responder que as pessoas têm que nos pressionar, nos dizer o que mais é preciso incentivar. Pois entendo que a sociedade civil tem muito mais força. Sabemos que os movimentos em defesa do uso de bicicleta representam o maior estímulo que temos dentro da cidade. Pois hoje já temos várias iniciativas como debates públicos, passeios com bicicleta, inúmeras atividades que o poder público nunca teria a capacidade de alcançar.

 

A sociedade civil organizada, pautando, pressionando, se não tiver um mínimo de sensibilidade e vontade política por parte da administração pública nós sabemos que a agenda acaba não ecoando, não avança, como temos visto em muitas cidades Brasil afora. A sociedade muitas vezes chega no limite do estresse para fazer as coisas acontecerem, para fazer a pauta avançar. Pergunto, então: nestes mais de três anos de gestão, o que mudou internamente na administração? Como a bicicleta é vista dentro do funcionalismo?

Posso responder no ãmbito da Secretaria de Transportes. No início a bicicleta como agenda pública era uma proposta do Prefeito incorporada no plano de metas e que ninguém sabia como se daria o processo de implantação. A bicicleta ainda era vista, até aquele momento, como um brinquedo, como lazer. Para que ela fosse entendida como um veículo, como parte da mobilidade, foi um exercício muito difícil. O primeiro ano da gestão foi muito complicado para a gente saber como e o quê nós tínhamos de alcançar, para quem estávamos trabalhando, como se colocar no lugar dos ciclistas, então entendo que hoje a CET avançou muito, tanto nas áreas de planejamento, projetos e operação.

A riqueza do processo tem sido ter o envolvimento de todas as áreas da CET. Literalmente todos colocam a mão na massa, e a gente fez questão, nestes três anos, de envolver todas as áreas da CET. A SPTrans, por exemplo, uma empresa que só pensava nos ônibus, é interessante observar que em alguns aspectos eles foram até mais rápidos do que a própria CET. Com a política de instalação de paraciclos, eles foram os primeiros, a questão de pensar a bicicleta e as ciclovias dentro das estruturas do transporte coletivo, dos projetos de corredores de ônibus. Todos os projetos desses corredores, desde o início da gestão, já sairam com projetos de ciclovias. Então acho que isto é um verdadeiro avanço. Enfim, fico muito orgulhosa de ver uma instituição que era bastante fechada apenas na questão do ônibus e que passou a entender que esta integração é uma política bastante saudável para as duas partes na cidade.

 

Internamente a bicicleta ganhou muita força, pelo que você está contando. Você sente que esta é uma questão direta da pressão e acúmulo dos movimentos e dos ativistas ou você sente que também houve muito estímulo por parte do Prefeito e dos Secretários?

Acho que é uma junção das duas coisas. Três, na verdade. Primeiro reconhecer a questão do Secretário [Jilmar Tatto] ter trabalhado estas políticas como prioridade, de ter agendas semanais para acompanhar o processo de implantação do sistema cicloviário; depois a criação do CMTT [Conselho Municipal de Trânsito e Transportes] e a Câmara Temática de Bicicleta, cujo fortalecimento institucional ajudou muito no processo e, por último, as trocas que temos com a sociedade civil, especialmente nos espaços setoriais, pois colocamos, desta forma, quem elabora os projetos junto com quem pedala, pois estes nem sempre têm a mesma visão.

Os técnicos passaram a entender que o melhor trajeto, por exemplo, é aquele validado pelos ciclistas que pedalam naquela região. Mas este já é um entendimento do final do processo, pois no início da gestão isto não seria possível pela falta de compreensão de todos. Então acho que o desejo do Prefeito, a força que o Secretário deu dentro da CET e SPTrans, sem impor nada, e o movimento social dos ciclistas, foram fundamentais para o processo [de implantação da rede cicloviária].

 

Pensando que a gestão vai chegando ao fim, caso o Prefeito Fernando Haddad não seja reeleito, você sente que pode haver retrocesso nestas políticas? E qual é o calcanhar de aquiles de todo sistema cicloviário de São Paulo?

Entendo que o processo de discutir a importância das ciclovias já está superado. Sobre resistências, acredito que possa haver um movimento forte nas ciclofaixas implantadas em vias coletoras, por conta do desejo de estacionar o carro. Esta é uma questão ainda não totalmente superada, pois representa “a perda do meu espaço”, mesmo sem que a pessoa tenha este direito. Em termos de ocupação, se os ciclistas usam, não há justificativa para retirar, para retrocessos. Sabemos que as estruturas ainda não atingiram sua potencialidade plena, mas há muitas maneiras de desestimular o uso de bicicletas, infelizmente. A própria CET já publicou notas técnicas em que ela mesma desestimulava as pessoas a pedalarem na cidade. Então, por mais maluco que seja a CET ir contra o próprio Código de Trânsito Brasileiro, nestes casos, há ideias que induzem você a pensar que há alguma coisa errada. Os resultados são todos os positivos, mais ainda há alguns efeitos, que chamaria de ‘midiáticos’, e que podem denegrir, um pouco, a imagem do projeto de implantação dos 400 km de ciclovias e ciclofaixas.

 

Mesmo com efeitos contrários, midiáticos, onde há ainda, no seu entendimento, arestas e pontos para resolver?

Há uma fragilidade histórica, em SP e no Brasil como um todo, de não acreditar nos planos. O não cumprimento de um plano diretor ou de um plano de mobilidade acaba não tendo implicações dentro da gestão política. Eu entendo que o plano de mobilidade de SP é extremamente frágil e que a vontade de implementá-lo ainda não está amarrada institucionalmente.

E tem outro que é, talvez, o maior problema para se resolver que é a questão orçamentária, porque mais da metade da verba para implantar o projeto [dos 400 km] veio de fundos, especialmente do Fundo Especial do Meio Ambiente (FEMA). Então não ter uma dotação orçamentária própria, não ter recursos específicos, é uma fragilidade para pensarmos num programa de continuidade. E este poderá ser um ponto a ser questionado, uma nova gestão poderá alegar que ‘não há recursos para continuar com a implantação e manutenção de infraestrutura cicloviária’.

 

Mesmo com a garantia, no FUNDURB (Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano), de aplicação de 30% dos recursos para o sistema cicloviário, de mobilidade a pé e transporte coletivo?

Isto não garante. Tanto é que são pouquíssimas subprefeituras, nesta gestão, que investiram recursos para construção de infraestrutura cicloviária. Tenho conhecimento de somente três [subprefeituras] que investiram de verdade [em estrutura cicloviária]. Mas três, de trinta e duas subprefeituras, é muito pouco. Algumas subprefeituras, inclusive, se recusaram a implantar infraestrutura para ciclistas. Ou seja, tem recursos, mas que não estão carimbados. Então os gestores utilizam pelo que eles acham que deve ser, pela visão pessoal. Então nesta parte orçamentária ainda faltam algumas amarrações institucionais.

 

Como fazer estas amarrações? Dá tempo ainda este ano?

Eu entendo, mais como Suzana, e menos como CET, que um elemento fundamental no início do processo de discussão sobre a bicicleta na cidade foi a composição do grupo pró-ciclista. Não ter o pró-ciclista faz com que se perca forças, sinergias, que permitam articular internamente, com outros órgãos, para qualificar as implantações.

 

E o CMTT (Conselho Municipal de Trânsito e Transportes) não cumpre este papel?

Não. O CMTT está focado em segmentos de transporte. E a Câmara Temática da Bicicleta se constitui de representantes de entidades de ciclistas.

 

Mas o CMTT tem representantes da administração pública, de diversas Secretaria. Ele é um conselho tripartite: usuários, operadores e poder público.

Sim. Mas ele não tem a mesma composição que teria o pró-ciclista, que é fundamental para o processo.

 

Então, no seu entendimento, falta um espaço institucional, intersecretarial, para discutir os projetos no âmbito da administração pública, sem a participação da sociedade civil?

Sim. Esta é uma crença minha, como Suzana.

Suzana Nogueira (Foto: arquivo pessoal)
Suzana Nogueira (Foto: arquivo pessoal)

Quando falam ‘ciclovia é importante, mas faltou planejamento”, o que você responde?

Minha resposta depende de saber para quem estou respondendo. Para leigos da área, eu primeiro explico o que é planejamento, que existe uma concepção, que o planejamento deve ser feito para a cidade toda, que a execução se dá em partes, que a estratégia de implantação não precisa estar vinculada ao planejamento. Muitas vezes quem diz ‘faltou planejamento’, não entende que são etapas diferentes, que o planejamento é uma etapa anterior, maior, e que a implantação é menor. Daí costumo explicar o processo conceitual sobre o que é o planejamento.

 

Mas se as pessoas não sabem o que é planejamento, quando elas dizem isto em que elas estão pensando?

Muitas pessoas entendem que ter planejamento é ter um projeto. Outras acham que planejamento é ter uma rede implementada na cidade toda da noite para o dia. Algumas pessoas entendem que ter planejamento é implantar no local em que elas acham mais importante. ‘Como assim vocês não começaram implantando no local que eu entendia que era o mais importante?’

 

Tipo “faltou o MEU planejamento’?

Pois é. E muitas vezes algumas pessoas acham que uma rua de importante conexão, que liga um parque, um centro cultural, a uma estação de metrô, não seria a rua ideal. Então muitas vezes falta compreender este outro olhar, do todo, da cidade, em que a definição da linha mais reta, do desejo, é pensada para os ciclistas e não para os demais. No final eu ainda questiono: ‘então o que você faria? Qual seria a solução para este trajeto específico?”, e percebo que as alternativas que as pessoas oferecem normalmente são muito piores para os ciclistas. Porque acham que os ciclistas ficarão melhores e mais seguros, segundo o planejamento pessoal delas, em vias secundárias, escuras, onde praticamente não passam pessoas. Daí eu costumo retrucar ‘sabia que os ciclistas têm os mesmos desejos dos motoristas, das pessoas que estão no ônibus, a pé? Porque o desejo é o mesmo’.

Mas, olha, muitas associações que não tem nada a ver com ciclistas e que bateram e criticaram muito no começo do processo, hoje elas não só entenderam tudo, como defendem as ações e chegam até a propor soluções com a ótica dos ciclistas, pois elas se permitiram pensar de uma outra forma.

 

Algum exemplo?

Eu citaria como o exemplo mais significativo a SAJAPE (Associação dos Moradores dos Jardins Petrópolis e dos Estados), em Santo Amaro, que todo mundo comentava que é uma associação muito crítica, o que é muito bom para qualquer processo, aliás. Mas eles foram extremamente propositivos, durante todo o tempo. Críticas propositivas são importantes para fazerem os processos avançar, aliás. Então este caso mostra que se a pessoa se permite pensar, reflitir, discutir, de fato a gente pode consolidar importantes avanços.

 

Uma parte da imprensa e da sociedade paulistana insiste em dizer que há uma certa apatia do “cicloativismo” paulistano, uma chapa-branquice. O governo é pouco cobrado e pressionado pelos movimentos? Ciclistas estão aceitando “qualquer coisa”?

Não. A gente é muito cobrado. Entendo como processos positivos. As cobranças são importantes, legítimas, quando vêm dos ciclistas. Normalmente demandas de locais em que eles têm interesse, demandas importantes para a cidade toda. Demandas de sinalização que não estão feitas, cruzamentos que não foram bem solucionados e isto é muito bom para o processo como um todo. O papel da CET é só da CET, o papel das associações é só das associações, mas quando elas têm o mesmo entendimento, dialogam e cumprem os combinados, a pauta avança. Não adianta dialogar, escutar e não executar, não cumprir os combinados. Daí os ciclistas vão bater. E com razão. (risos)

 

Ministério Público e Tribunal de Contas… pedras no sapato?

O Ministério Público começou questionando o mérito das implantações. Mas hoje entendo que isto está, de certa forma, superado. Até porque existe a função do Ministério Público e acho correto o trabalho que eles estão fazendo, desde que não se julgue o mérito. Já o Tribunal de Contas, a minha crítica maior é com relação ao mérito mesmo. Muitas vezes eles não fazem questionamentos sobre contas ou sobre o erário público. Como eles não têm especialistas com formação em mobilidade, muitas vezes o TCM faz questionamentos que acabam perdendo a importância, como questionar a quantidade de ciclistas nas estruturas. Se tiver dez, cem ou mil ciclistas, não importa, o nosso papel é executar. Até porque a primeira coisa que nós fazemos é cumprir a lei. A política nacional de mobilidade urbana diz que nós temos que fazer, então discutir se com dez ciclistas eu faria, com cem não, com mil faria, qual a lógica? Nós entendemos que todas as vias devem estar preparadas.