Entenda por que o capacete para ciclistas é apenas um boné de isopor sem qualquer poder mágico

Por Daniel Guth

Escrito por Daniel Guth e João Lacerda

“Cadê o capacete?”

“Quer exigir direitos sem respeitar os deveres? Cadê o capacete?”

“Você está errado. Está sem capacete!”.

Quem nunca ouviu uma das frases acima é porque nunca pedalou na cidade. O senso comum muitas vezes nos leva a conflitos urbanos que podem culminar em situações extremamente desagradáveis e degradantes, como levar uma fina educativa ou um xingamento de um motorista que se sentiu particularmente confrontado porque você está pedalando sem capacete.

Isopor de capacete (Foto: João Gunal)

Menos isopor, mais bicicletas

Os benefícios que o uso disseminado da bicicleta trazem para a sociedade como um todo são evidentes. Ainda assim, eventualmente nos deparamos com iniciativas que colocam tal uso como uma atividade de risco.

É moralmente inaceitável e legalmente injustificável atacar o uso da bicicleta como uma atividade de alto risco e que necessita do uso obrigatório de equipamentos de proteção individual. É fundamental levantar alguns dos motivos para que os próprios ciclistas, as autoridades e a sociedade em geral deixe de lado o capacete para bicicleta e se engaje para que mais pessoas pedalem cada vez mais.

Mas antes dos motivos, vale esclarecer alguns pontos fundamentais:

  1. Este artigo não foi escrito com o objetivo de fazer com que as pessoas desistam de usar capacete, mas sim para que não sejam injustas e desonestas ao forçar o seu uso.
  2. “meu primo caiu de cabeça e, não fosse o capacete, ele estaria morto”. Vamos desconsiderar estes argumentos, tudo bem? Não que o conteúdo emocional não seja importante, mas o foco aqui é outro – é produzir reflexões e pensamentos a partir de dados, estatísticas, fatos e exemplos estudados.
  3. Tudo bem discordar dos autores deste artigo. Tudo bem mesmo.

Vamos aos dados:

 

Uso do capacete não é um ítem obrigatório pela legislação brasileira

Simples assim. Se você quiser usar, use-o. Mas não venha com o falso discurso da obrigatoriedade legal para forçar comportamento às demais pessoas. Da próxima vez que alguém vier com o dedo em riste por que um ciclista está “sem capacete”, lembre-se que, além de não tem amparo legal, é um discurso intelectualmente desonesto.  O que diz o Código de Trânsito Brasileiro:

Art. 105. São equipamentos obrigatórios dos veículos, entre outros a serem estabelecidos pelo CONTRAN:

VI – para as bicicletas, a campainha, sinalização noturna dianteira, traseira, lateral e nos pedais, e espelho retrovisor do lado esquerdo.

 

Ciclistas estão MENOS expostos a ferimentos e traumas na cabeça do que pedestres, motociclistas e até motoristas de carro

No Brasil, ciclistas representam 7% dos deslocamentos e 4% dos “acidentes”, automóveis 24% dos deslocamentos e 27% dos “acidentes”, enquanto as motos representam 12,6% dos deslocamentos e 22% dos “acidentes”. A fonte é o cruzamento de dados da “Pesquisa IPEA – Mobilidade Urbana (2011)″ e o “Mapeamento das Mortes por Acidentes de Trânsito no Brasil – Confederação Nacional de Municipios (2009)″.

Um estudo francês enumera os riscos de cada modal ao enumerar o risco de ferimentos na cabeça/milhão de horas percorridas:

      • Ciclista  –  0.41
      • Pedestre  –  0.80
      • Ocupante de veículo motorizado  –  0.46
      • Motociclista  –  7.66

A principal causa de morte no trânsito é a imprudência no somatório de todos os fatores; o fator humano aparece em 98,6% das ocorrências graves na cidade de São Paulo o fator veicular tem 5,9% de participação e o fator via/meio ambiente tem 17,7%.

Airbags para motoristas, capacetes para ciclistas e armaduras para pedestres não irão salvar vidas como se busca propagar. A simples idéia de pedestres com capacetes na calçada é socialmente repugnante. Ou abandonamos imediatamente o discurso do capacete para ciclistas, ou passamos a defender capacete para todos. Segue uma foto sugestiva:

car-helmets

 

Obrigar o uso do capacete é a pior forma de promover o uso de bicicleta e produz efeito inverso ao desejado

Além do discurso do medo e da associação com uma atividade de alto risco, que muito mais desestimulam do que estimulam as pessoas a adotarem a bicicleta como meio de transporte, os paises que semearam vento e passaram a obrigar o uso de capacete para ciclistas, só colheram tempestades. Muitos paises tentaram, mas voltaram atrás após se depararem com os desastrosos resultados. Por sorte apenas a Austrália e a Nova Zelândia seguem adotando esta obrigatoriedade. E a Australia é um case internacional, muito estudado pelos efeitos negativos da obrigatoriedade do uso de capacete implementada em 1992. Mas quais seriam estes efeitos negativos?

    • Com a obrigatoriedade do uso de capacete, as viagens realizadas em bicicleta, na Australia, cairam entre 30 e 40% no geral, e cairam mais de 80% em alguns grupos específicos, como mulheres com ensino fundamental incompleto. Os motivos para esta vertiginosa queda no uso estão associados à complicação de um modal que deveria ser simples, ao encarecimento de um modal que deveria ser barato e às pesadas multas aplicadas.
    • Sistemas de bicicletas compartilhadas das cidades de Melbourne e Brisbane, por conta da obrigatoriedade do uso de capacete, são considerados um fracasso em decorrência do baixo índice de uso.
    • Fatalidades em decorrência de problemas de saúde, associados à falta de atividade física, na Australia, são infinitamente superiores aos problemas de lesão na cabeça ao pedalar. Estima-se que mais de 16 mil australianos morram prematuramente todos os anos por conta dos baixos índices de atividade física.
    • Os índices de ferimentos e traumas na cabeça não diminuiram em decorrência da obrigatoriedade no uso de capacete. Mostrando, mais uma vez, a inocuidade da medida.

A literatura internacional já comprovou que se o uso de bicicleta dobra, o risco individual de cada ciclista cai em aproximadamente 34%. Chama-se segurança na quantidade, ou seja, quanto mais pedestres e ciclistas circulando, mais seguro serão seus deslocamentos.

Se considerarmos o exemplo australiano de queda no uso de bicicleta em decorrência da obrigatoriedade de uso do capacete, então podemos dizer que esta medida ocasionou efeito inverso ao desejado: culminou por expor ainda mais os ciclistas a riscos e insegurança.

 

Capacetes são inócuos para proteger sua cabeça

Capacetes foram desenhados para proteger ciclistas de impactos de até 20 km/h. Em uma colisão com um carro a 40 km/h, a força do impacto chega a ser dez vezes superior, levando à conclusão de que o capacete é um elemento inócuo nesta relação de impacto e força. Capacetes, portanto, podem até proteger de um galho de uma árvore ou de um “pedala moleque” do seu amigo, mas não produzirão efeito algum em uma colisão com um veículo motorizado. Há estudos, ainda, que indicam que capacetes mal colocados, mal produzidos ou até em situações ideais de uso podem expor seus usuários a ferimentos mais graves do que se não estivessem usando nada. Ou seja, em uma situação de traumatismo craniano ou de ferimento físico de baixa gravidade, o capacete pode induzir a um trauma do tipo rotacional, este quase sempre fatal. Confira estudo do Dr. W. J. Curnow.

 

Capacetes e equipamentos de proteção individual desviam a atenção dos problemas reais

No Brasil morrem anualmente 65 mil pessoas nas nossas estradas, rodovias, avenidas e ruas, segundo dados do DPVAT (seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores). Para efeito comparativo pelo número de mortos no trânsito o Brasil vive, em um ano, 4 anos da Guerra do Iraque. E estes são números tão alarmantes que eles foram banalizados nos debates públicos ou mesmo na agenda pública formulada pela sociedade, pela imprensa e pelo poder público.

“Uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”. Esta frase de Joseph Stalin reproduz bem a situação de anestesia que vivemos quando falamos sobre segurança viária. O Brasil, em Novembro, sediará encontro da década de segurança viária da ONU, mas não terá muito o que apresentar após 5 anos como signatário de uma proposição internacional para reduzir em até 50% as mortes no trânsito até 2020.

Enquanto não formulamos uma agenda pública nacional para solucionar, desde a raiz, os urgentes problemas de segurança e mortes no trânsito, continuaremos culpabilizando as vítimas. Sejam os pedestres “imprudentes” ou ciclistas que “deveriam estar de capacete”.

Segundo dados da CET-SP, os principais envolvidos em atropelamentos que resultam em morte, na cidade de São Paulo, são, pela ordem (note a posição ocupada pela bicicleta):

Automóveis: 51%;

Motocicletas: 30,3%;

Ônibus: 10,4%;

Caminhões: 2,4%;

Bicicletas: 0,4%.

Foto: Rachel Schein
Foto: Rachel Schein

Paises com maiores índices de uso de bicicleta têm os mais baixos índices de uso de capacete

Holanda e Dinamarca, por exemplo, são os países com os mais altos índices de deslocamentos feitos em bicicleta. Não paradoxalmente são os países com os mais baixos índices de uso de capacete. E esta não é uma feliz coincidência, mas sim uma feliz evidência de que promover o uso do capacete só produz efeitos nocivos ao próprio uso de bicicleta nas cidades. Segue artigo (em inglês) sobre os motivos por que os holandeses não usam capacete.

O famoso estudo do pesquisador estadunidense Peter Lyndon Jacobsen, Safety in numbers: more walkers and bicyclists, safer walking and bicycling, sobre cidades californianas e européias e a relação da segurança dos modos ativos de deslocamento, é mais uma evidência de que a segurança das pessoas que caminham e pedalam nas cidades está associada diretamente à proporção de pessoas que caminham e pedalam e os motivos por que elas caminham e pedalam não tem relação alguma com o uso do capacete. Muito pelo contrário.

 

Uso de capacete aumenta o comportamento de risco

Médicos e especialistas, ao investigar as razões por que o uso de capacete em modalidades de esporte na neve não estava diminuindo as mortes e lesões cerebrais graves, concluiram que o uso do capacete induz a um comportamento de risco maior, em decorrência da falsa “sensação de segurança” que ele produz no usuário. “Não há 100% de prevenção de lesão cerebral. Quanto mais a cabeça e o cérebro estão protegidos, mais riscos as pessoas vão correr”, disse Alan Weintraub, do programa de lesão cerebral no Craig Hospital, no Colorado. Veja matéria da Folha de São Paulo sobre o assunto.

 

Um capacete salvou minha vida! (será?)

O capacete de bicicleta é basicamente um boné de isopor com um capa colorida. O polipropileno expandido (nome técnico do plástico utilizado) é escolhido justamente por suas capacidades de absorção de impacto.

Mesmo sem qualquer evidência científica, ciclistas “capacetados” costumam oferecer como testemunho dos poderes sobrenaturais de seus chapéus plásticos fotos do acessório destruído após algum acidente.

Um olhar mais atento no entanto nos mostra que em geral o isopor não sofre qualquer compressão deformativa que evidencie absorção de impacto relevante. Tal evidência ajuda a concluir que no geral o capacete para ciclistas protege apenas de aranhões e ralados na cabeça quando se está pedalando em baixa velocidade.

Para impactos mais fortes, tal como a maioria que envolve veículos ou objetos rígidos, o isopor irá comprimir e quebrar em apenas 1 miléssimo de segundo. A absorção por um período tão curto é insuficiente para prevenir danos graves ou evitar mortes. Exatamente por esse motivo todo capacete tem um adesivo que informa que o acessório não é capaz de prevenir todos os danos à cabeça.

Quem quiser saber mais vale dar uma olhada no site da Bicycle Helmet Research Foundation que fala sobre os mitos em relação ao uso do capacete e onde foi publicado o texto “A helmet saved my life“, que inspirou esse tópico.

 

Usar capacete = levar mais finas!

Motoristas tomam menos cuidado ao ultrapassar um ciclista com capacete, porque entendem que ele está “mais protegido”. A diferença entre estar ou não de capacete é uma fina de quase 10 cm de disferença! Confira o estudo.

 

Indústria automobilística incorporou, desconfie.

Desde o nascimento do fordismo, da indústria automobilística e das políticas públicas associadas a dar vazão a este novo invento do capitalismo chamado automóvel, a culpabilização das vítimas sempre foi um elemento central na construção da narrativa da própria indústria e seus asseclas.

Contém ironia. Quando crianças começaram a morrer atropeladas pois brincavam no meio da rua, a culpa passou a ser delas que não estavam trancafiadas em casa ou nas praças e playgrounds cercados. Pedestres estão no topo das mortes no nosso trânsito, é porque eles não atravessam “na faixa” ou nas passarelas ou porque seus comportamentos são erráticos (segundo a lógica motorizada das nossas ruas). Ciclistas estão expostos ao trânsito violento das cidades porque não se protegeram suficientemente com capacetes, luvas, joelheiras, cotoveleiras…

Vale conferir “Como a indústria automobilística proibiu atravessar a rua” e entender como o senso comum foi fabricado.

A indústria automobilística defender o uso do capacete para ciclistas é como a indústria de armas de fogo defender o uso de colete à prova de balas. É a inversão completa de prioridades e de premissas. E o discurso é tão sedutor que a sociedade não questiona ou, mais grave ainda, concorda cegamente com ele. Basta ver a quantidade de ciclistas aplaudindo quando a Volvo lança uma tinta spray para ciclistas ou quando a Ford lança um capacete inteligente para ciclistas.

 

Confie mais na bicicleta

Esperamos que os dados, estatísticas, estudos e evidências aqui detalhados possam esclarecer um pouco mais o debate sobre o uso do capacete e, mais do que isto, que possam diminuir a animosidade causada pelo preconceito, falta de dados e pelo senso comum emburrecedor.

Da próxima vez que você ouvir “cadê o capacete?” pare, dialogue e mostre os fatos. Desconstruir um senso comum é um processo educativo longo e deve ser encarado com respeito e serenidade.

Pedalemos, pedalemos! Com ou sem capacete. Mas que a escolha seja integralmente sua.

Foto: Rachel Schein
Foto: Rachel Schein