Com a colaboração de João Lacerda
Sempre é bom analisar o interesse e a forma que se promove o uso do capacete. Principalmente para entender quem se beneficiaria com o uso massivo deste equipamento. Uma reportagem veículada no domingo, durante o programa Fantástico, da TV Globo, demonstrou testes realizados pelo Inmetro em 8 marcas de capacete disponíveis no mercado. CLIQUE AQUI para assistir a matéria completa.
Os apresentadores dão o tom tendencioso da reportagem:
“Inmetro hoje vai testar um equipamento que todo mundo deveria usar, mesmo não sendo obrigatório”.
Se o equipamento não é de uso obrigatório pela legislação brasileira, por que a precipitada conclusão de que “todo mundo deveria usar”? Não seria mais honesto dizer que hoje a legislação faculta seu uso e deixar que cada um, com sua própria capacidade de análise crítica, faça sua própria conclusão?
Já no início da reportagem em si, um estudo é destacado na tela:
“54,1% dos brasileiros praticam algum esporte ou atividade física, e o ciclismo ocupa o 2º lugar na preferência geral”.
Este é um dos principais equívocos conceituais de toda a proposta da dupla dinâmica Inmetro-Fantástico. De qual uso de bicicleta estamos falando? Com que finalidade? Não é possível padronizar os usos e dizer que o ciclismo esportivo se assemelha ao uso como meio de transporte, uma vez que os comportamentos, as velocidades, as premissas, enfim, são totalmente distintas.
O uso do capacete em uma prova de ciclismo de estrada ou em uma prova de mountain bike e trilha, por exemplo, caracteriza-se pela relação direta que os participantes atletas tem em adotar posturas e comportamentos de risco, inerentes à prática da atividade esportiva em si. Nelas, o uso do capacete é indicado – ou obrigatório, como o fazem os organizadores de provas – pois os tombos, os galhos, os escorregões são comuns e fazem parte, inclusive, do imaginário de quem participa destas provas.
Já aos ciclistas urbanos, trabalhadoras e trabalhadores conectados à bicicleta como solução para sua mobilidade na cidade, as premissas são outras e não se processam da mesma maneira. A segurança destes está diretamente ligada às relações entre os veículos, no espaço viário compartilhado, e não ao tamanho da armadura que possam ostentar. Não à toa, nas grandes cidades brasileiras, 80% dos ciclistas não se envolveram em nenhum caso de colisão e/ou atropelamento nos últimos 3 anos, segundo pesquisa recém lançada pela ONG Transporte Ativo.
“Pois é, também tô nessa. Sabe como é, tive neném e agora tenho que voltar ao meu corpinho sensual. E escolhi pedalar. Adoro” – Dona Encrenca, personagem fictício criado pelo quadro do Fantástico
Este é mais um reforço sobre o foco da reportagem: a bicicleta tratada como um mero instrumento para se praticar alguma atividade física. Em toda a reportagem não há nenhuma menção à bicicleta como meio de transporte, que é a principal motivação para seu uso. Ainda segundo a pesquisa de perfil do ciclista brasileiro, 88% dos ciclistas entrevistados, em todo o Brasil, usam a bicicleta para ir e voltar do trabalho. Ou seja, como meio de transporte.
“Nós resolvemos testar capacetes em função de estarmos observando um aumento aumento significativo no uso de bicicleta; principalmente nas grandes cidades” – Alfredo Lobo, diretor do Inmetro
Até este momento da fala do diretor do Inmetro, a reportagem relacionou a bicicleta unicamente sob o aspecto da atividade física e do lazer. O aumento no uso de bicicleta citado pelo representante do Inmetro, concluimos, diz respeito ao uso recreacional e esportivo, então? Aliás, um parênteses: em quais pesquisas/estudos o diretor do Inmetro se baseou para afirmar que o uso de bicicleta, no Brasil, está aumentando?
“Será que os capacetes estão prontos para resistir a um impacto e proteger os usuários?” – enuncia a voz em off, na reportagem
O Inmetro testou dois tipos de impacto: uma queda a 19,5 km/h em ciclovia ou ciclofaixa, e outro a 16 km/h com queda na sarjeta. Deixando de lado os resultados para estes dois testes, vamos avaliar a metodologia escolhida:
Qual a principal causa de morte ou ferimentos graves de ciclistas nas cidades? Os dados são bastante elucidativos: atropelamento e imprudência de condutores de veículos motorizados (carros, ônibus e caminhões, principalmente). Tecnicamente, o que chamamos de atropelamento as autoridades de trânsito chamam de colisão entre veículos (automóvel colidindo com uma bicicleta; o que é uma nomenclatura um tanto questionável, pois praticamente isenta os seres humanos de qualquer participação… mas não vamos entrar neste debate agora).
Vejamos o que diz o relatório 2014 de mortes no trânsito da CET-SP sobre a causa de morte de ciclistas (por colisão ou atropelamento): dos 47 ciclistas mortos em 2014, 15 morreram atropelados por automóveis; 7 por caminhões; 11 por ônibus e 1 por motocicleta.
Ora, se os veículos motorizados é que são os principais responsáveis pelas mortes de ciclistas – e também de pedestres, aliás – então seria lógico e bastante óbvio que o principal teste do Inmetro, para os capacetes, simulasse um atropelamento/colisão entre uma bicicleta e um veículo motorizado, não? E o que fizeram o Inmetro e o Fantástico? Nada. Silenciaram. Esqueceram. Não acharam importante.
Nossa suposição é a seguinte: como o resultado seria também lógico e óbvio, a reportagem optou por “omitir” a questão mais essencial para qualquer ciclista urbano. Se o Inmetro e o Fantástico tivessem seriedade e hombridade com a mobilidade por bicicleta, eles fatalmente testariam os capacetes em uma situação real de segurança aos ciclistas urbanos e nós ouviríamos a seguinte conclusão:
“Os resultados foram inconclusivos, pois não apenas nenhum capacete passou nos testes, como também, se algum tivesse passado, o resultado final seria o mesmo – independente do uso ou não deste equipamento. O que leva o Fantástico e o Inmetro a concluirem, caros telespectadores, que a segurança dos ciclistas nas cidades brasileiras está especialmente relacionada em como os veículos motorizados se portarão com eles; e não em como eles se protegerão dos veículos motorizados. Concluimos que, assim como os profundos problemas de segurança pública não são solucionados com muros altos e carros blindados, a segurança de quem se desloca de bicicleta não se encontra nos equipamentos de proteção individual, especialmente o capacete. Cabe ao poder público – e não à armadura dos cidadãos – criar as condições adequadas para que as pessoas, em qualquer veículo, possam se deslocar confortavelmente e em plena segurança”.
O que se viu no entanto foi um desfile de senso comum sem qualquer embasamento. Chegou às raias do absurdo ao colher o depoimento de uma ciclista de perfil esportivo que repete um mantra dos que defendem o capacete acima até do bom senso e de estudos sérios: “Se eu não estivesse de capacete, não estaria viva”.
A agenda obscura do Inmetro e a conclusão
Segundo fontes do mercado de bicicletas, há meses o Inmetro trabalha em uma proposta de tornar compulsória a certificação dos capacetes. À luz do que foi feito com partes e peças de bicicletas, esta certificação pode parecer um elemento positivo para o uso de bicicleta no Brasil, mas não é. Com a certificação obrigatória, o uso obrigatório será a próxima medida demandada naturalmente, uma vez que, supostamente, sua “segurança e eficácia” estará resguardada pelos testes de laboratório.
Conforme apontamos em outro artigo publicado nesta coluna, tornar obrigatório o uso do capacete seria uma medida com resultados catastróficos para o uso de bicicleta no Brasil, assim como o foi nos locais onde foi implantada.
Pela lógica de beneficiar o usuário do produto capacete, o teste do inmetro faz sentido, mas nem isso a reportagem foi capaz de provar. Afinal, o padrão brasileiro é mais uma “solução jabuticaba” que não se enquadra nos padrões internacionais de certificação já existentes. Aqueles implementados em nações vitimas do lobby do capacete quando de sua adoção massiva para atividades desportivas.
Outro argumento para questionar a eficácia da certificação de capacetes como benéfica ao usuário, está na completa falta de regras de segurança para as bicicletas comercializadas atualmente no Brasil. Freios que não freiam, alavancas de modelos infantis que são duras demais para as crianças, a falta de critérios capazes de garantir com que o ciclista tenha em mãos um produto seguro deveria se concentrar com mais intensidade onde a certificação fosse ser mais benéfica, isto é, na qualidade da bicicleta em si, que hoje ainda deixa bastante a desejar.
A certificação compulsória de partes e peças da bicicleta, hoje em vigor no Brasil, na prática não garante um produto seguro e ainda cria mais barreiras de oportunidades em um mercado extremamente desigual de oportunidades – vale lembrar que 40% da produção nacional de bicicletas está na informalidade em decorrência, especialmente, da altíssima carga tributária do setor. Mas este tema será fruto de outro artigo nesta coluna.
O mercado coloca nas mãos de consumidores um veículo aquém de parâmetros mínimos de funcionamento e certamente o selo do inmetro poderia ser responsável por auxiliar melhores escolhas na hora de comprar uma bicicleta. Mas, infelizmente, não é o que vemos. Parece-nos, pelos resultados práticos, que o Inmetro tem servido muito mais ao lobby das grandes fabricantes – que desejam esmagar os pequenos e médios fabricantes e ver o Brasil com poucas marcas e concentradas no Polo Industrial de Manaus – do que dos interesses e direitos dos consumidores, ciclistas brasileiros. A certificação do capacete, concluimos, parece pedalar no mesmo sentido.